{ Q U E S T } Walrus - Amelie Mildenhall & Keith Mildenhall

Amelie estava animada com a primeira incursão que iria fazer em meses. Passou um bom tempo de recuperando e treinando com Keith para que conseguissem estar bons o suficiente para o Walrus, mas Flint escolheu exatamente a noite de lua vermelha e ela sabia o porquê. Queria usar seu marido como uma arma de guerra, queria usá-lo como algo que se joga fora quando não tem mais propósito. Ainda assim, ela estava muito animada, caminhando pelas ruas de Hahle para chegar até o navio, puxando Keith pela mão como sempre fazia quando estava animada com algo, ao chegarem ao navio ela apenas o olhou com um olhar de "fique aqui". Era cedo demais e a maioria da tripulação ainda estava para chegar, Amelie viu Flint olhando por seu dispositivo que ela não sabia e não se importava de saber o nome, ele percebeu sua aproximação, claro, com quem mais havia aprendido a arte de perceber quando as pessoas se aproximam de você. Um sorriso abriu no rosto de Flint, mas antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Amelie desferiu um soco forte contra seu rosto que fez ele cuspir sangue.

— Amelie... — Ele tentou falar, mas foi interrompido.

— Amor de pai é um caralho. Eu te amo e você sabe disso, mas eu não vou tolerar que você faça qualquer coisa contra Keith e simplesmente saia rindo como se nada tivesse acontecido.  — Havia raiva em sua voz, ódio na verdade, mas ela apenas se afastou indo em direção a Keith como se não tivesse acabado de dar um soco em seu próprio pai.

— Vamos entrar, está escurecendo e logo irá começar a transformação, precisamos de um lugar seguro pra isso.  — Começou a caminhar pelo navio o arrastando com sua mão até chegar na parte mais baixa onde eram guardado mantimentos. Colocou um cobertor no chão e fez Keith deitar-se sobre ele antes que pudesse protestar. Ela estava com muita pouca paciencia hoje. — Eu sei que isso vai doer, mas eu estou aqui, eu não vou sair do seu lado.  — O beijou antes de qualquer coisa, seus lábios contra os lábios dele parecia algo tão certo. Queria que ele se sentisse seguro apesar de ser socado Flint Mildenhall, naquele momento haviam apenas os dois.

Amelie estava determinada a ficar ali até que a transformação acabasse. Ela sabia que era mais doloroso para ele por não ser um lycan puro. Segurou sua mão quando ele retirou a prótese, colocando de lado.

— Tudo bem, shh... Vai ficar tudo bem.  — Acariciava seu cabelo, tentando acalmá-lo até que a transformação começou. Não aguentava vê-lo assim, embargado em dor, conseguia sentir a transformação começando pelo calor que saía de seu corpo. Não poderia ceder naquele momento e deixar as lágrimas descerem, precisava ser forte pelos dois. Continuou acariciando seu cabelo loiro enquanto assistia a transformação começar, com um sorriso no rosto para o que ele havia dito. — Eu tô aqui, vai ficar tudo bem... Corajosa é meu nome do meio.  — Não sabia o que dizer para que fosse mais fácil, não tinha como fazer ser mais fácil pra ele. Tudo o que podia fazer era ficar ao seu lado até que aquilo acabasse. Não conseguia imaginar a dor que sentia, mas seus gritos de dor faziam seu coração apertar, talvez assim ela soubesse. Continuou acariciando seus cabelos enquanto ele tomava forma, uma forma que ela imaginava que ele não queria ter. Se pudesse mataria seus pais sem nem pensar duas vezes, todo o sofrimento que ele tinha que lidar era culpa deles, mas não podia deixar isso transparecer, precisava estar forte, ou pelo menos fingir que estava, segurando as lágrimas. Ele não era um monstro para ela, longe disso, não sabia se ele conseguia ouvi-la ou ouvir qualquer coisa que não fosse a dor. Fechou os olhos tentando manter a pose de durona, se ela começasse a chorar agora, por ver a pessoa que amava em dor, tudo iria por água abaixo. Até que ouviu a porta se abrir e fechar abruptamente, ela levantou com a adaga na mão, não deixaria que ninguém chegasse perto de Keith, mas ao ver Flint descendo as escadas seus olhos se arregalaram, mas que porra ele queria agora. Flint parou quando chegou perto deles, mexeu em sua mandíbula, olhou para Keith e depois para Amelie.

— Que porra você quer...  — Começou, já impaciente. Sabia que ele tinha a salvado e sabia que ele era como um pai para ela, mas não conseguia evitar a raiva que sentia. — Eu não quero você aqui agora.  — Flint parecia destroçado, sua expressão demonstrava isso, ele se apoiou na escada e olhou para Amelie.

— Você me deu a porra de um soco na cara. — Ele falou, mas não parecia com raiva. Olhou para Keith, os olhos marejados e quase com pena. Amelie se pôs à sua frente para que ele não visse a cena. Flint suspirou.

— Você deu um soco na cara do meu marido à troco de nada!  — Ela exclamou, não parecia que estava falando como sua filha agora. Flint sentiu como se houvesse levado um soco no estômago. — E agora você usa ele como uma arma de batalha, como se nada tivesse acontecido!  — A raiva era tão espessa em sua voz que ele conseguia sentir no ar.

— Amelie... — Ele começou, mas ela lhe deu outro soco, dessa vez mais forte, o que o fez se desequilibrar e tossir o sangue que saía de seu nariz. Se perguntava como alguém tão magra era tão forte, mas ele a treinou, afinal. — Eu estava bêbado, não fui racional. — Ele tentou se desculpar, entre os gritos de dor de Keith, que era tudo o que Amelie se importava agora.

— Foda-se, Flint!  — Quando sua raiva era maior do que sua habilidade de pensar, ela não conseguia controlar. Seus punhos estavam cerrados e ele abaixou a cabeça, derrotado.

— Você e ele são a única coisa que eu tenho, eu não quero perder vocês dois. — Ele admitiu, passando as mãos pelo cabelo ruivo e curto. Precisava convencê-la de que ele não era uma ameaça, de que ele só estava tentando cuidar dela, mas todas as palavras pareciam erradas. — Eu cometi um erro, não deveria ter feito isso... — Amelie se aproximou mais, com o olhar penetrante, se controlando para não socá-lo novamente.

— Tarde demais pra isso agora.  — Ela esbraveou, se afastando, mas Flint segurou sua mão.

— Se algo acontecer com você... — Ela pôde ver seus olhos marejados de choro. — Ou com ele... — Respirou fundo antes de continuar. — Eu nunca irei me perdoar.

— Pai...  — Apesar de chamá-lo de pai, seu tom não estava diferente. — Nós temos coisas mais importantes pra nos preocupar agora. Por favor, só vai embora até que isso acabe, é difícil pra ele e é difícil pra mim, se eu morrer hoje eu não quero que carregue essa culpa pelo resto da vida. Por favor, eu creio que estamos mais perto do Walrus do que estávamos antes e a tripulação precisa de um capitão, assim que ele se transformar, irei levá-lo até o deck, até lá, só vá.  — As palavras de Amelie o atingiram como um tiro no peito, não podia esconder isso, então a abraçou sem pensar, mesmo sabendo que ela iria recusar seu toque. Queria a dizer que a amava, que também amava Keith, que eles eram a única família que ele tinha, mas após um abraço curto, ele se recompôs e saiu sem dizer uma palavra sequer. Amelie tinha os olhos cheios de lágrimas, mas assim que Flint passou pela porta, os deixando, ela correu de volta para Keith, a transformação agora quase completa. Talvez ele houvesse ouvido tudo o que acontecera, ela esperava que não. Passou as mãos por seus cabelos que agora tomavam um tom de pêlo loiro, enquanto ouvia seus gritos de dor. De repente eles cessaram, Amelie esperou até Keith recobrar a consciência mesmo naquele estado. Estava tão aflita que não conseguia parar quieta, embora estivesse ajoelhada ao seu lado, pelo menos a dor tinha acabado agora.

— Amor... Está tudo bem... Eu tô aqui...  — Ela tentou dizer com a voz quebradiça. — Eu tô aqui, você só precisa me seguir e atacar os que estão de vermelho, eu estarei ao seu lado o tempo todo, eu prometo. Eu prometo.  — Sabia que agora ele conseguia ouvi-la, tinha que permanecer forte e ser resistente pelos dois. Seus olhos azuis agora se tornaram dourados, as mãos que conhecia tão bem agora eram garras, mas ainda era seu Keith. Amelie engoliu em seco, ainda era seu Keith.

Amelie esperou pacientemente sua transformação acabar, tentando não chorar, o que parecia impossível. Ele não devia passar por isso, mesmo que não sentisse sua dor, podia ver o quanto ele sofria e isso era o suficiente para ela sofrer também. Quando a transformação terminou, Keith estava irreconhecível, naquela forma lycan que ela já vira outra vez. Queria segurar sua mão e dizer que tudo ia ficar bem, mas suas mãos agora eram de um lycan e as garras enormes impediam que ela fizesse isso. Respirou fundo quando ele assentiu estranhamente em sua outra forma, ele estava consciente agora.

— Eu vou ficar do seu lado o tempo inteiro, não vou deixar ninguém te tocar.  — Ela disse com uma voz carinhosa, sabia que os homens iriam focar nele durante a batalha, embora não tivessem chance alguma de vencer contra. Tinha visto o que Keith fez da outra vez, mas ainda assim se sentia receosa em sair do seu lado. — Vamos.  — Ela disse, o guiando para fora do local onde estavam os mantimentos, teriam que subir alguns degraus para chegar no deck, então ela aproveitou para falar, mesmo sem saber se ele iria assimilar corretamente as coisas que ela dizia.

— Flint veio aqui enquanto você estava se transformando.  — Ela começou, lembrando do que havia acontecido minutos atrás. — Eu soquei ele outra vez.  — Ela riu consigo mesma, mas não era um sorriso alegre, havia um tom melancólico, uma risada sem uma expressão certa. Continuou subindo alguns degraus, olhando para trás para ver se ele estava bem, devia ser difícil subir degraus tão pequenos sendo agora tão grande. Passaram pela área dos canhões, onde os homens já se preparavam colocando as balas gigantes dentro deles, aguardando o sinal do capitão. E depois pela outra área dos canhões, já que eram dois andares apenas para isso. Aquilo iria destroçar completamente o navio que iriam atacar. Sabia que uma luta atacando outro navio era matar ou morrer, embora fosse boa em matar, sempre ficava nervosa quando tinha que atacar outro navio e matar outras pessoas, lembrava bem do que aconteceu da outra vez, o que fez sua espinha gelar. Mas ela não tinha medo da morte.

Ao chegarem no deck, Amelie olhou em volta e parecia que todos estavam apenas esperando pelos dois para atacar o navio, o que em sua opinião foi uma perda de tempo, mas tinham uma arma poderosa agora e de certa forma entendia. Viu Elliot conversando com Flint e anotando algumas coisas num papel, ele nunca participava dessas batalhas, era fraco demais e provavelmente iria morrer se fosse, além de ser medroso e um pouco covarde, ao menos era assim que Amelie o via. Logo ele se retirou, passando por Amelie e Keith rapidamente, ela sabia que ele ainda estava com medo dela, o que a fez rir baixo. O navio que iriam atacar estava próximo, mas não próximo o bastante para eles atracarem. Talvez Flint estivesse apenas esperando por Keith para fazer isso.

— ERGAM AS VELAS E A BANDEIRA! — Ele gritou e os homens fizeram o que ele disse, a ventania seria uma vantagem para chegarem mais rápido ao Walrus. Caminhou até Flint, ainda antipática, com Keith ao seu lado, a seguindo como um cão de guarda.

— Então, qual é o plano?  — Perguntou com a voz seca. Flint virou-se para ela após calcular em sua cabeça a distância que se encurtava com o outro navio. — Esse parece ser grande, alguma estimativa da tripulação?  

— Talvez 60 homens. É maior do que Seymour, mas temos uma vantagem que eles não tem. — Ele olhou para Keith de relance e limpou a garganta. — Sendo assim, alguns vão precisar ficar aqui para que o navio não seja atacado por eles. — Ele olhava para Amelie agora, como se sem precisar dizer, ele tivesse a escolhido para ficar enquanto os outros iam, não lhe dando o poder de escolha. Quando Amelie percebeu, arregalou os olhos, não desviando dos olhos dele por um único segundo.

— Não!  — Gritou e ele puxou seu braço.

— Amelie, o que aconteceu da outra vez... — Ele começou, mas Amelie conseguiu se soltar de seu aperto e começou a caminhar para a beira do deck, furiosa. Ela não era fraca, ela sabia porquê ele queria que ela ficasse, mas em todos aqueles anos, de todas as feridas que teve, aquela foi a única que quase a matou. Não iria deixar que aquela nova cicatriz em sua barriga a impedisse de lutar dessa vez, independente do que ele dissesse. Viu o Walrus ficar lado a lado do Blackmore, perto do navio pirata, o outro parecia uma piada, mas ainda assim, era grande. De repente o capitão do outro navio gritou "FOGO!" antes que pudessem reagir e as balas de canhões foram disparadas. Amelie se abaixou no chão do deck sentindo os pedaços de madeira caírem sobre si, Flint fez sinal, também abaixado para um dos homens que estavam perto dele e o homem correu desviando das balas, mas nem todos tiveram aquela sorte. Logo ouviu os canhões do Blackmore sendo disparados e foram tantos que deixou o navio em frangalhos. Olhou ao seu redor em meio a todo aquele barulho, alguns homens de preto haviam caído no chão gritando de dor, outros já estavam mortos com um tiro na testa. — BONES! — Flint gritou para o mais recente membro do navio, que era um ótimo sniper, ele começou a disparar as balas, matando os homens que atiravam contra a tripulação do outro lado. Eles não faziam ideia de onde essas balas estavam vindo, o que deixou tudo mais interessante. Quando derrubou o último, Flint gritou para que todos corressem até a ponta do deck, colocando a prancha sobre os dois navios. Ele olhou para Amelie e ela apenas desviou o olhar, fazendo sinal para que Keith a seguisse, Flint bufou derrotado, ela realmente era teimosa, sempre fora.

— KEITH! VERMELHO!  — Gritou quando chegaram no deck do Walrus, o capitão parecia confuso, as balas continuavam vindo de algum lugar, mas não tinha ninguém no Blackmore atirando, Amelie quase quis rir disso, mas precisava focar na luta. Enquanto Keith começava a atacar os homens do Walrus, Amelie ficava atenta à sua frente ou ao seu lado, matando todos que pudessem chegar perto enquanto ele estava distraído. Foi quando viu ao longe um dos homens com uma arma, droga, aquele filho da puta tinha sobrevivido ao Bones. Ele começou a erguer a arma em direção a Keith e ela foi se esquivando rapidamente dos homens que tentavam atacá-la enquanto ela se aproximava dele. Não podia deixar aquele homem disparar, ou continuar vivendo.

Não conseguiu evitar olhar para trás quando Keith era atacado, queria estraçalhar todos aqueles homens de uma única vez, até se esqueceu do homem que segurava a arma, ele sabia que ela estava vindo até ele, felizmente Bones conseguiu, de cima do mastro, matar os homens que tentavam domá-lo. Um alívio saiu de seu peito e Amelie virou-se novamente para o homem que segurava a arma. Suas mãos tremiam, parecia uma criança com medo. Ela riu, se aproximando mais.  

— Largue essa arma e talvez eu poupe sua vida.  — Ela disse, perto o suficiente para que ele ouvisse no meio de todo o barulho que acontecia ao redor. Era apenas um rapaz, devia ter 18 anos, provavelmente era sua primeira viagem e tinha tido o azar de encontrar um navio pirata. Uma pena, mas isso era a vida de um pirata, afinal. — Eu sei que seu alvo não sou eu, mas ele, vamos resolver isso de forma civilizada, você larga a arma e eu te deixo correr para dentro do navio como o covarde que você é antes que meu amigo oculto dê um tiro em sua cabeça.  — Ela se aproximava quase como uma cobra, a postura firme, os passos quase teatrais, para lhe dar medo. A mão do rapaz tremia mais a cada passo que ela dava.

— Bom, já que não é por bem...  — Puxou as espadas e ia atacá-lo quando ele disparou contra ela, com as mãos ainda tremendo de medo. Amelie sentiu o impacto e deu dois passos para trás, caindo no chão de madeira do deck, tudo ao seu redor se tornou um borrão por conta do impacto tão próximo, mas ela logo começou a recobrar a consciência. Colocou a mão no peito, no lugar onde sentia uma dor excruciante, por pouco não havia atingido seu coração. Olhou o sangue que pela luz da noite parecia piche e apesar da dor e de ter acabado de levar um tiro e seu olhar estar turvo, ela levantou-se e caminhou novamente até o rapaz que mantia a pistola levantada para ela. — Você não sabe quem eu sou.  — Ela disse, pegando suas espadas, o rapaz tentou atirar novamente, mas como todas as balas à pólvora, havia uma grande chance de não funcionar e por sorte ele não conseguiu. Ele tentou virar-se para correr, mas ela o puxou pelos cabelos e colocou a espada em seu pescoço. Conseguia ouvir seu choro implorando por sua vida, mas ela estava pouco se fodendo para isso no final. Cortou o pescoço dele tão facilmente quanto se corta um pedaço fino de carne e ele caiu ao chão, morto. Sentiu uma presença atrás de si e se virou, sua visão estava tão turva que ela mal conseguia distinguir as coisas, mas percebeu o uniforme vermelho e começou a lutar com o homem, contra sua espada, enfiou uma de suas damas em seu abdomen, onde sabia que ficavam as partes vitais e ele caiu ao chão. Não sabia de onde conseguia tirar tanta força estando à beira de um colapso, talvez estivesse sendo guiada pela raiva. Correu, desviando das investidas até o lado de Keith, ele iria perceber que ela estava sangrando eventualmente, ela tentou disfarçar cobrindo a ferida da bala com seu sobretudo, mas sabia que seus instintos eram mais apurados quando ele estava naquela forma e o cheiro de seu sangue não era uma exceção.

— Não pense em mim, pense apenas em matá-los, eu estarei aqui do seu lado, ninguém vai te tocar de novo.  — Tentou fazer sua voz parecer confiante, mas sua visão estava embaçada, talvez pelo choque, talvez pela perda de sangue. — Vamos acabar com esses filhos da puta.  

— BONES! — Flint gritou para o homem que estava bem escondido dentro de um mastro, acertando todos aqueles que investiam contra sua tripulação. — DESCARREGUE TODAS AS BALAS QUE VOCÊ TEM MATANDO ESSES VERMES! — Ele gritou novamente, mas antes que a tripulação do Walrus pudesse fazer qualquer coisa, uma chuva de tiros começou, focando apenas neles. Amelie se impressionou em como ele era bom naquilo, embora estivessem lutando o tempo inteiro, Bones conseguia acertar perfeitamente seus alvos.

Amelie continuou lutando ao lado de Keith, não deixando que ninguém se aproximasse dele, matando qualquer um que tentasse. Sentia seu corpo ficar cada vez mais dormente, mas não podia deixar que machucassem mais ainda o homem que amava. Colocou toda força que tinha, enfiando as espadas e matando um de cada vez, às vezes mais de um, quando Keith estava distraído matando a tripulação do Walrus ele precisava de alguém que o protegesse enquanto ele fazia isto. Ela era essa pessoa, tentava ignorar a dor que sentia no peito e simplesmente colocar toda a sua raiva e força na luta, conseguiu matar três homens de uma única vez. Olhou ao redor, mesmo com Keith e Amelie ali, haviam tido algumas baixas, principalmente os mais novos. Era a vida de pirata, afinal. Você nunca sabe quando ou como vai morrer, só espera sua hora e dá o seu melhor para que não seja cedo. Restavam poucos deles, agora seria mais fácil, se sentia orgulhosa consigo mesma por ter aguentado por tanto tempo, a lua vermelha já começava a se dissipar no céu, era quase manhã, Amelie estava tão tonta que parecia uma bêbada tentando controlar seus passos. Flint veio até ela enquanto a tripulação terminava de matar os que sobraram e começar a levar a carga para Blackmore. Ele percebeu seus lábios pálidos e o sangue que ela tentava esconder.

— Não foi nada, foi só um tiro.  — Ela tentou dizer, mas a esta altura Keith já havia desmaiado e sido levado para seus aposentos, onde voltaria a ser ele mesmo e ela colocou a mão sobre o ferimento, percebendo que toda a sua roupa estava encharcada com seu próprio sangue.

— Amelie, precisamos ir para o Elliot. — Ele disse, genuinamente preocupado, ela sorriu sem emoção, mas sentiu seu corpo colapsar, talvez pelo cansaço da batalha, talvez pela perda de sangue, talvez pelos dois. Caiu nos braços de Flint e tudo ficou preto.  — ELLIOT! — Ele gritou, a levando em seus braços de volta para o Blackmore, Elliot estava cuidando de outros feridos, mas parou assim que viu Amelie, embora tivesse medo dela, ela era essencial para a tripulação. A levaram até os aposentos que ela bem conhecia, deturpava entre delírios e realidade, enquanto Elliot começava a fazer seu trabalho.

— Keith... Ele está bem?  — Elliot fez que sim, mas ela precisava vê-lo para ter certeza. Talvez tenha sido estupidez continuar lutando e se esforçando quando havia acabado de levar um tiro, talvez tenha sido uma grande estupidez, mas na maioria das vezes, Amelie não pensava antes de agir. Sua visão estava turva e seus olhos pesados. Ela continuava repetindo o nome de Keith como se o chamasse ou ordenasse que ele aparecesse, sem sucesso.

Não conseguia mais sentir a dor, enquanto Elliot retirava a bala antes que ela se desfazesse dentro de seu corpo. Não precisava de álcool para aquilo, Flint estava ali, andando de um lado para o outro e Elliot começou a enfaixá-la, não se importava em estar seminua na frente de Elliot e seus ajudantes, tudo o que vinha à sua cabeça era Keith. Entre um desmaio e outro, ela recobrava a consciência brevemente, até que finalmente o viu entrando nos aposentos.  

— Keith...  — Ela disse com a voz embargada. Queria abraçá-lo e dizer que estava tudo bem, mas seus olhos pesavam demais e sua consciência era confusa. — Tinha um... Rapaz... Ia atirar em você... Eu tentei pará-lo, mas ele atirou em mim... Foi só um tiro, eu vou ficar bem.  — Um tiro muito perto de seu coração, nem ela mesmo acreditava em suas próprias palavras.

— Eu só perdi... Muito sangue... Mas eu vou ficar bem.  — Elliot a cobriu com o cobertor, ao menos era mais fácil retirar uma bala do que costurar seus órgãos como da última vez. — Eu te protegi, está tudo bem agora.  — Queria estender sua mão para ele, mas novamente sua consciência se esvaiu e ela mergulhou num oceano profundo de escuridão. Não sabia quanto tempo passou desacordada até recobrar a consciência, só sabia que Keith estava ali e estava bem, era isso o que importava.

— Amor...  — O chamou, em seu sub consciente ela sabia quem ele era. Seus olhos pesavam novamente, mas ela tentou permanecer acordada. — Foi só um tiro.  

— Elliot! — Flint gritou e o homem ruivo se assustou, recuando um pouco para trás. — Se minha filha morrer hoje, eu arranco sua cabeça. — Amelie estava cansada daquilo, segurou a mão de Keith, ainda um pouco fraca e sorriu, um sorriso fraco.

— Eu vou ficar bem.  — Ela tentou lhe passar confiança, mas o clima entre Elliot e Flint não estava ajudando. Suspirou, tentando não desmaiar novamente.

— Vocês podem... Levar essa discussão estúpida pra fora daqui... Eu já disse que estou bem.  — Mas o esforço que fez para falar aquilo, alto demais, a fez deitar a cabeça no travesseiro e fechar os olhos, tentando ao máximo permanecer consciente. Flint olhou para ela, depois para Elliot e o puxou pela gola da roupa para fora do quarto. Seus ajudantes os seguiram, deixando uma garrafa de álcool na mesa. Ela não acreditava que iria precisar daquilo embora a dor em seu ferimento fosse muito forte. Abriu os olhos novamente, quase cedendo ao desmaio e sorriu docemente para Keith, usando a pouca força que tinha para acariciar seu rosto. — Às vezes eu penso... Que seria mais fácil se eu fosse uma vampira. Morcego, sombras... Mas morrer queimada no sol...  — Tentou fazer uma piada, mas Keith parecia preocupado demais para rir ou entender sua piada. Ela não conseguiu segurar sua consciência dessa vez e desmaiou novamente, em um sono sem sonhos. Tudo o que conseguia sentir era um imenso vazio, como se estivesse caindo em um abismo. Esperava que não tivesse passado tanto tempo desacordada, quando acordou novamente. Sorriu para Keith que ainda estava ali, ele sempre estaria ali. — Eu te salvei dessa vez... Acho que quando me recuperar mereço um favor.  — Mesmo machucada, Amelie continuava sendo Amelie e seu sorriso logo se tornou travesso, tocando a ponta do nariz de Keith como sempre fazia quando estava brincando com ele.

Embora fosse difícil se manter consciente e coerente, Amelie ouvia claramente quando Keith falava com ela. Estava consciente quando ele falou as últimas palavras, embora as outras tenham se confundido em sua cabeça, porém a palavra "morrer" havia ficado. Ela segurou sua mão e beijou levemente.  

— Não se preocupe comigo, eu vou ficar bem...  — Sentia seus olhos pesarem de novo, mas não podia se deixar ceder para a inconsciência, não sabia o que acontecia quando ela estava inconsciente e não gostava disso. — Foi só um tiro, já passei por coisas piores, lembra?  — Lembrou-se da vez que teve uma espada cravada em seu abdomen e a merda que teve que passar pra conseguir sobreviver.

— Só um tempo de recuperação e eu fico novinha em folha.  — Ela tentou sorrir, mas apenas saiu um sorriso triste. Droga, não queria que ele se preocupasse mais do que estava. — Não foi culpa sua, é a vida de um pirata, essas merdas acontecem, não tem como evitar. Muitos não tiveram a mesma sorte que eu.  — Ela segurou sua mão com um pouco mais de força. A porta se abriu bruscamente e todos entraram de novo, até mesmo Flint. Elliot estava pálido e parecia ter visto um fantasma, ela se perguntava o que Flint havia dito ou feito com ele, isso não melhorava o medo que o homem sentia dos dois, imaginava que uma hora ele não iria aguentar e iria se retirar da tripulação.

— Oi Elliot.  — Tentou ser gentil falando com ele, sabia que ele ainda estava com medo dela. — Você é o médico aqui, o melhor que já tivemos, diz pra ele que eu vou ficar bem.  

— B-Bom... — Elliot gaguejou, olhou para Flint, depois para Keith, depois para Amelie. Engoliu em seco. — Eu já retirei a bala, não tem mais o que se preocupar, ela só precisa recuperar o sangue que perdeu e cuidar da ferida. — Ele deu um sorriso amarelo para Flint, parecia que estava falando aquilo para todos ali, mas sua maior preocupação era Flint, que o encarava com uma expressão mortal.

— Viu? Tá tudo bem.  — Tentou falar, sentindo seu corpo ceder ao desmaio e novamente foi levada para um abismo escuro onde sentia que estava caindo no infinito. Não sabia quanto tempo ficou desacordada, mas quando acordou novamente, Elliot estava em uma mesa mexendo em algumas coisas e Flint estava sentado em um banco de braços cruzados. Olhando para Amelie e Keith, parecia que ele queria falar alguma coisa, Amelie não sabia dizer se o roxo em seu rosto tinha sido dos seus socos, mas riu por isso embora não tivesse força.

— Você vai ficar parado aí me olhando que nem uma estátua?  — A voz de Amelie era ríspida, mas fraca. Flint não queria ter aquela discussão novamente e principalmente não agora quando ela estava tão fraca, então levantou-se e saiu sem dizer uma palavra.  Amelie bufou, claramente com raiva. — Eu não acho que ele quer falar só comigo.  — Ela disse olhando para Keith, se lembrava da noite anterior, das coisas que ele tinha dito a ela. Passou a mão pelos cabelos, o coração acelerado. Era muito fácil para Amelie ficar com raiva de qualquer coisa, se tivesse forças agora sem dúvidas daria outro soco em Flint.

Amelie fechou os olhos por alguns segundos, tentando segurar a vertigem e depois abriu novamente, ouvindo as perguntas de Keith que cada vez mais pareciam ecos distantes. Ela se lembrou do que aconteceu novamente, na área de mantimentos, antes da batalha.  

— Eu não queria que ele visse você se transformando então me pus na frente dele. Ele parecia mal, arrependido, mesmo depois que eu o soquei de novo, ele pediu perdão pelo que tinha feito, disse que...  — Cada vez ficava mais difícil falar. Ela sentiu a vertigem de novo. Elliot ordenou para que um dos ajudantes trouxessem comida, isso iria ajudar com o sangue que ela havia perdido, mas Amelie não conseguia ouvir mais nada ao seu redor, sua visão estava embaçada. — Eu acho que você deveria... Falar com ele... Não tenha medo, ele não vai te machucar.  — Ela sorriu brevemente, segurava a mão de Keith com menos força porque não conseguia ter mais força para apertar mais forte.

— Vá, Elliot tá aqui, eu vou ficar bem.  — Numa última tentativa de erguer força, ela acariciou o rosto de Keith, seus olhos assustados, ela sabia que ele estava morrendo de preocupação. — Eu vou estar aqui quando você voltar.  — Amelie murmurou, sentindo aquela horrível vertigem de novo. Sentia que a cada momento ficava mais fraca, mas iriam lhe trazer comida, o que era bom. Ela só precisava fazer Keith sair dali antes que ele surtasse ao ver o quão fraca ela estava ficando.

— Elliot vai cuidar de mim...  — Piscou os olhos mais uma vez, já não sentia seus lábios. — Você precisa falar com Flint agora.  

— Não se preocupe, Keith. Ela vai ficar bem. — Elliot tentou não gaguejar falando com Keith, embora ele soubesse no que Keith se transformava, ele não parecia hostil como Amelie ou Flint, ou a maioria daquele navio, mas em especial o capitão e sua filha. — Se algo mudar em seu quadro de saúde eu aviso, acredito que Flint esteja próximo. Logo a comida vai chegar e eu vou ter que... F-Forcá-la a comer... — Elliot gaguejou, se seu intestino estivesse cheio agora só de pensar em forçar Amelie a fazer alguma coisa, ele se cagaria. Se aproximou de Amelie e checou seu pulso, dando um sorriso confiável a Keith. Sentia que embora fossem diferentes, de alguma forma eram parecidos.

— Eu iria preferir uma boa dose de álcool.  — Amelie tentou falar com a voz embargada, como sempre sendo muito teimosa. Elliot suspirou com as mãos tremendo. Como iria domar aquela besta até que Keith voltasse?

— Mas acho que álcool não recupera porra nenhuma.  — Ela sorriu fracamente e deixou que a dormência a levasse, afundando novamente em um desmaio.

—Ela vai acordar logo, quando isso acontecer talvez eu precise da sua ajuda pra forçá-la a comer. — Elliot disse, um pouco mais aliviado por Amelie ter adormecido. Sentia medo dela tanto quanto sentia de Flint, mas por algum motivo não sentia medo de Keith. Ele sorriu para ele ajustando os óculos.

Amelie estava completamente desacordada, sem nenhuma consciência do que se passava ao seu redor, talvez assim fosse a morte, um eterno vazio.

Mas Flint estava consciente, muito consciente, assistindo enquanto Walrus pegava fogo do outro lado, alguns de seus homens não tinham conseguido voltar para o deck e caíram no mar. Era difícil para Flint perder homens daquele jeito, mas era como as coisas eram quando se era um pirata, você precisa ser forte o suficiente para sobreviver a um ataque onde todos querem te matar, se sentia grato de Amelie e Keith terem sobrevivido dessa vez. Ele olhou para Keith quando o viu se aproximar e soltou um suspiro cansado.

— Eu falei com Amelie quando você estava se transformando... Ela me deu um soco. — Ele riu olhando para o navio que pegava fogo. — Se eu soubesse que ela não é minha filha biológica, eu poderia jurar que ela é. Só mesmo Amelie pra me socar duas vezes numa única noite e ainda ficar com raiva. Ela queria proteger você de mim enquanto você se transformava, se colocou à sua frente pra que eu não visse, mas... — Flint abaixou a cabeça, entre a luz amarela do fogo que contrastava com seu cabelo e barba ruivos. — Foi difícil aceitar no começo que minha garotinha estava crescendo, já disse, eu quis te socar muitas vezes, mas a forma que ela te ama e protege, bom... Você é como um filho pra mim, Keith, embora eu tenha te socado aquele dia, eu sinto muito, eu estava bêbado e com ciúmes, não devia ter feito isso, Amelie se vingou muito bem. — Ele passou a mão no rosto onde estava machucado. — No começo devo admitir novamente que duvidei de sua capacidade, mas você merece ela, embora ela ainda esteja irritada demais comigo, é difícil fazer Amelie mudar de ideia quando ela foca em alguma coisa, principalmente quando se trata de raiva. Eu lembro que quando a coloquei na tripulação, senti uma conexão imediata com ela, mas ela era tão teimosa... Todas as lutas que ela tentava e perdia, insistia de novo e de novo, mesmo se machucando, até conseguir. A cabeça dura dela é como uma pedra, eu não sei se ela vai conseguir me perdoar por ter te socado, particularmente eu não teria perdoado quem socou minha falecida esposa, mas ela é como uma filha pra mim, espero que entenda isso, parece que ela só ouve você. Grande demais para ouvir seu próprio capitão, confiante demais pra me socar duas vezes... — Flint riu. — Talvez em alguma outra vida eu seria o pai biológico dela e tudo faria sentido. — Ele olhou para o horizonte, com um semblante triste. — Ela já passou por coisas piores, sabe... Quando os vigilantes a pegaram, a machucaram tanto que eu não sei como ela conseguiu aguentar, mas ela não disse uma palavra, nem quando estava levando chicotadas, ela permaneceu fiel à sua tripulação, isso é o que ela é. Eu a acolhi quando ela tinha quinze anos e era uma simples pescadora adolescente, ela nunca quebrou uma promessa durantes todos esses anos, mesmo passando por tortura. Talvez eu não mereça Amelie, mas você merece. Desde que se casaram, você é um filho pra mim. — Ele colocou a mão no ombro de Keith. — Eu não aguentaria perder nenhum de vocês dois.

E o som das coisas explodindo dentro do Walrus se tornou mais alto do que a voz de Flint, ele apenas observou o navio se desfazer enquanto mantia a mão sobre o ombro do rapaz.

Flint suspirou, ainda observando o navio inimigo queimar, ouvindo as palavras de Keith. Parecia mais sereno, mais calmo. Ele abaixou a cabeça e sorriu para Keith, dessa vez um sorriso de verdade.

— Desde que a conheci, aos 15 anos, ela sempre foi difícil de domar, aquela ali é uma teimosa sem precendentes, quando ela coloca algo na cabeça é muito difícil de tirar. — Ele abaixou a cabeça, sentindo-se culpado. — Eu não duvidaria que você tentou, você é um homem de honra, Keith, diferente da maioria aqui. Mas Amelie, ugh... — Ele levantou a cabeça novamente olhando para Keith de uma maneira que não era hostil ou inóspita. — Ela sempre foi assim, desde que a conheci, teve uma vez em que um dos antigos tripulantes aproveitou que ela estava dormindo e colocou as bolas no rosto dela, ela acordou e sem pensar duas vezes arrancou os órgãos do homem e o matou, ele era um bom guerreiro. Eu tentei convencê-la de que ela estava errada e ela só mandou eu me foder. Aos quinze anos. — Ele riu, lembrando do dia que aquilo tinha acontecido.  — Eu tentei lhe dar um esporro pelo que ela tinha feito e mesmo sendo pequena e inexperiente ela só disse "foi o último lugar que ele colocou aquela merda", eu não consegui prender o riso quando ela disse isso. Eu sabia que ela era assim desde aquele dia. Não tão diferente de mim, uma pirata de verdade. Amelie sempre foi especial, eu não deixaria ela nas mãos de alguém que eu não confio. Eu confio em você e confio em Elliot, eu nunca tive filhos, nunca pude ter, depois que minha esposa morreu, mas então apareceu ela, uma adolescente pedindo para entrar para a tripulação e quanto mais ela treinava mais eu via potencial e sabia que ela era diferente dos outros, quando ela te trouxe ao navio, tive minhas dúvidas, mas ela é inteligente, ela é muito inteligente, de sua própria maneira, mesmo sendo indomável e inconsequente, eu confiei nela quando te trouxe à tripulação, sabia que ela tinha visto algo especial em você, não estava errado. Sei que ela ainda tem raiva de mim pelo que aconteceu, eu também teria, como disse, mas ela tem esse sexto sentido, como um olho exterior, onde ela pode ver além das pessoas, além do que elas demonstram, sempre admirei isso nela. — Dessa vez seus olhos não deixaram os olhos de Keith. — Confiei nela quando ela te trouxe à bordo, não sou um homem sem coração embora agora ela pense isso. É, os socos que ela me deu demonstram bem o que ela pensa sobre mim, mas isso demonstra sua lealdade a você. Eu te soquei uma vez, ela guardou o rancor até conseguir me socar duas vezes. — Ele riu, passando a mão pelo rosto machucado. — Desde que ela te escolheu, você se tornou parte da minha família, não sei se já disse isso, mas você é tão especial pra mim quanto ela é... Bom, talvez não tanto já que te conheço há menos tempo, mas ainda assim... Blackmore não seria nada sem vocês e eu não seria nada sem vocês. Ela vai ficar bem, é forte, isso não é nem metade do que ela já passou.

Amelie recobrava a consciência lentamente, com um prato de sopa ao seu lado e um dos ajudantes de Elliot tentando fazê-la comer, já que Elliot tinha medo demais de Amelie pra fazer isso, ela tentou se levantar sentindo a dor no peito, devido a ferida e empurrou o prato de sopa que quase caiu sobre o homem.

— EU NÃO VOU COMER ESSA MERDA! — Embora estivesse fraca, Amelie ainda era Amelie e se encolheu no canto, mesmo sabendo que deveria continuar deitada. Elliot tentou dizer algo, como "você precisa se alimentar para se recuperar", a forma que os dois falavam deixava claro que Amelie era uma pirata órfã e Elliot era um médico estudado, mas naquele momento ela não encontrava Keith ou Flint, o que a deixou com mais raiva. — VOCÊ ACHA QUE UMA SOPA DE GALLANT VAI ME CURAR... PORRA... EU JÁ DISSE QUE ESTOU BEM! — Gritava tão alto que seus gritos podiam ser ouvidos por todo o deck, embora ela sentisse vertigem e sentisse que iria desmaiar a qualquer momento de novo, se espremia no canto da cama sem deixar ninguém chegar perto dela, se perguntando onde Keith estava ou onde Flint estava, com aqueles homens estranhos que não conhecia. Olhava para a tigela de sopa como se fosse a coisa mais nojenta do mundo, buscando sua adaga ou suas armas, mas nenhuma delas estavam ali. Ela sabia que poderia confiar em Elliot, mas não iria ceder tão facilmente àquela sopa. Quando Elliot chegou perto ela apenas cuspiu em sua cara, fazendo o homem recuar e limpar seus óculos, saindo para fora, imaginava que iria tentar encontrar Keith ou Flint, o que lhe deu um pouco de paz, mas continuou olhando o homem que segurava a sopa de olhos arregalados, como se ela fosse um animal feroz que devesse ser domado. Estava fraca demais para lutar contra e a vertigem da fraqueza a fazia mais fraca ainda, mas não iria recuar.

Flint riu quando viu Elliot vindo até eles, limpando os óculos na roupa. Ele não sabia o que fazer, respirou fundo colocando os óculos circulares novamente e olhou para os dois, pálido de medo. Talvez agora tivesse medo de Keith também.

— Eu tentei fazer ela comer e ela cuspiu no meu rosto. — Ele disse, como se esperasse alguma resposta do capitão, que apenas ria da situação.

— Talvez você devesse tentar mais, Elliot. — Flint não conseguia parar de rir, lembrava até de Amelie nesse aspecto. — Olha, você sabe como ela é, só deixe, ela não vai ouvir você. — Flint também estava com medo que Elliot deixasse a tripulação, mas não deixou isso transparecer, apenas o levou para os outros feridos, dando sinal para que Keith fosse ao invés de Elliot.
 — Ela cuspiu no meu rosto! — Elliot reclamou, mas Flint o empurrou levemente para os outros feridos que estavam no deck. Achava graça de tudo aquilo, mas precisava manter sua pose para ser respeitado, então fechou a cara. Elliot entendeu o recado e foi cuidar dos outros feridos que estavam em uma situação muito pior que Amelie, um deles gritava de dor com a perna estourada em frangalhos, provavelmente teria que ser cortada.

Amelie continuava no canto, esbravando com o pobre homem que não ia comer aquela sopa, mesmo que Gallant tivesse feito ela, ela confiava em Gallant, mas não confiava nos outros tripulantes, não depois de todos os anos que viveu sendo a única mulher naquele navio. Quando viu Keith entrando nos aposentos, ela parou de gritar e se acalmou um pouco.

— Ele quer que eu coma essa merda! — Disse para Keith, mas ele não parecia ouvi-la e pediu para os outros saírem deixando os dois sozinhos. Ela ficou confusa até que ele falou. Olhou para a sopa em suas mãos e depois para ele. Flint e Keith eram as únicas pessoas que ela confiava, mesmo que tivesse dado dois socos em Flint em uma única noite. Respirou fundo e ajustou o travesseiro para se sentar, gemendo de dor enquanto se ajustava. — Eu estava imaginando onde você estava. — Ela disse, ainda olhando com desgosto para a sopa. O chá que ele tinha feito pra ela da outra vez havia a deixado no mínimo traumatizada com o gosto, mas ele pareceu gostar quando provou. Amelie estava com fome depois de ter gastado tanta energia e força em uma batalha mesmo com um tiro no peito, pegou a tigela de sopa das mãos de Keith e sem a colher começou a beber a sopa como se fosse sua última refeição. Fez uma careta quando terminou porque ainda estava quente, talvez tivesse ingerido tudo muito rápido, mas tomou mesmo assim, como um animal faminto, talvez Keith já estivesse acostumado com a forma que ela comia, não era nada cordial ou delicada, Amelie engoliu a última dose da sopa e devolveu para Keith a tigela de madeira vazia, olhando para ele e esperando ele começar a contar. Seu olhar era curioso, embora ainda sentisse aquela vertigem, claro seu corpo teria que digerir a comida antes de processar para seus glóbulos sanguíneos, mas ela não se importava com a vertigem agora, embora sentisse que a qualquer momento fosse desmaiar. Só havia uma pessoa que conseguia domá-la de todas as formas possíveis e era o homem que estava à sua frente, mesmo ela sentindo vergonha de admitir isso, sendo uma pirata tão conhecida e temida, apenas uma palavra de Keith a fazia se ajoelhar aos seus pés e fazer qualquer coisa que ele pedisse. Ela ergueu uma sobrancelha ruiva esperando ele começar a falar, tinha feito o que ele pediu, agora esperava que ele fizesse o que dizia que iria fazer, ela estava realmente curiosa. Suas mãos formigavam e mal conseguia sentir suas pernas pela perda de sangue, mas sua mente estava completamente ativa, não podia desmaiar agora, não na melhor parte. Imaginava tudo o que Flint poderia ter dito a ele, embora ele tenha dito aquelas coisas à ela na noite anterior, sabia que a conversa de Keith e Flint havia sido diferente da conversa que eles tiveram, afinal, Keith não havia dado um soco no capitão.

Amelie ainda estava fraca, mas ouviu tudo o que Keith disse, ela lembrava do que Flint tinha falado na noite anterior antes que ela fizesse ele se retirar, era bom que tinha dito o mesmo a Keith. Respirou fundo quando ele falou sobre perdoar o capitão, aquilo não seria fácil de se fazer, ela guardava rancor muito fácil e era difícil se desfazer, como se fosse uma pedra enterrada em seu coração, difícil demais de quebrar. Mas Flint era diferente, precisava pensar nisso, ele era seu "pai", ele a acolheu quando ela não tinha para onde ir, lhe tratou e cuidou quando filha quando ninguém mais o fez. Isso a fez pensar, embora sua expressão agora fosse de raiva e fechada, ela abaixou a cabeça.

— Eu vou falar com ele um dia. — Sua voz era baixa e séria, com aquela careta que Keith conhecia muito bem. — Mas agora não dá, não consigo olhar pra ele sem lembrar do que ele fez com você, se pudesse eu lhe daria outro soco. Mas eu vou falar com ele eventualmente, eu só preciso me livrar disso. — Era claro que ela não conseguia olhar para Keith enquanto falava aquilo, também não conseguia parar de pensar no que aconteceu, talvez fosse mais do que teimosia, talvez dessa vez fosse algo mais forte do que isso que ela não conseguia compreender. Suspirou virando-se para olhar para seu amado novamente.

— Fico feliz que ele tenha te contado as coisas que eu fiz, acho que ele contou sobre o cara que se aproveitou de mim enquanto eu dormia, foi bom torturar e matar ele, Flint tentou me dar um esporro por eu ter matado um tripulante e eu mandei ele se foder. Mas acho que ele contou isso. — Ela começou com um sorriso no rosto, um sorriso amargo, respirou fundo novamente, sabia que tinha que deitar, mas havia acabado de tomar uma tigela de sopa de uma única vez. — Ele meio que me contou que te via assim ontem enquanto você se transformava, fico feliz que ele tenha falado isso a você pessoalmente, sabe... Ele é muito fechado pra essas coisas, mas por dentro ele tem um coração bom, mesmo que a maioria o tema. — Continuava com o mesmo sorriso no rosto, também não gostava de estar naquela situação com Flint, ela o amava como um pai, mas algo dentro de si não conseguia simplesmente perdoar. Segurou a mão de Keith ternamente, embora tivesse pouca força para fazê-lo e começou a brincar com seus dedos, mantendo o olhar baixo, evitando olhar para ele. Ela faria tudo o que ele pedisse, iria a qualquer lugar que ele fosse, mas aquilo parecia difícil demais pra ela, mesmo Keith pedindo que ela fizesse.

Flint estava em sua mente durante o tempo inteiro que Keith se manteu em silêncio. Amelie pensava em várias coisas ao mesmo tempo até ouvir ele perguntando como ele ficava como se transformava, ela riu, enstusiasmada, se levantando na cama mais do que podia.

— Você vira uma fera grande com unhas enormes, pêlos loiros como seu cabelo, garras enormes nos dedos, é tão legal! — Ela quase esqueceu que isso era extremamente doloroso para ele e limpou a garganta. —Quer dizer... Você vira um lycan enorme, não tão grande quanto a maioria, mas seus olhos azuis se tornam dourados e os pêlos são da mesma cor que seu cabelo, é muito legal! Eu sei que é doloroso, mas pra mim é muito legal. — Amelie riu consigo mesma, lembrando da noite anterior.

— Comer carne humana... Eu achei muito sexy, honestamente... Você estava feroz como um animal e tudo o que eu queria era montar em você de uma maneira animalesca, mas tive que me conter obviamente, ugh... Eu achei muito legal você comer carne humana, aqueles merdas mereciam, embora eu não conhecesse nenhum deles, eram nosso inimigos e isso é o suficiente. E sim, quando voltarmos pra casa eu vou tomar a merda da sua sopa, aposto que vai ser melhor do que a de Gallant. — Ela se aproximou de Keith e deitou a cabeça em seu ombro, segurando seu braço para se apoiar. Logo a vertigem ficou forte demais para lidar e ela apenas se deixou levar, torcendo para que não fosse a morte, seus olhos fecharam lentamente enquanto se apoiava em Keith, seus olhos azuis como o mar se fecharam lentamente e ela se sentiu caindo em um abismo profundo mais uma vez. Ganhou forças para falar algo mais uma vez, sem abrir os olhos ou se mexer. — Eu te amo. — E depois disso não teve consciêcia de mais nada, estava completamente inconsciente caindo em um grande e escuro abismo onde só sentia a gravidade a puxando para baixo. Queria se segurar em algo, se segurar em Keith, tentar voltar à realidade, mas talvez aquilo fosse um desmaio, talvez aquilo fosse a morte. Morrer em seus braços não parecia tão ruim, seria uma ótima forma de morrer afinal. Seus dedos perderam a força e ela lentamente começou a cair de volta na cama.