Era madrugada, Amelie estava sentada no chão ao lado da cama enquanto ouvia o silêncio da madrugada. Sentia que as coisas estavam voltando lentamente, quem ela era estava voltando lentamente, mas no momento lidava apenas com as sensações ruins, então mesmo com o charuto, era muito difícil dormir. Observava o aposento da estalagem escura com apenas a luz noturna entrando pela janela, seus pés descalços tocando a madeira fria enquanto a chuva caía do lado de fora por ser outono. Amelie sempre vestia as roupas pesadas de pirata, mesmo quando estava em casa ou quando ia dormir, pois não conseguia se sentir confortável usando roupas leves e muito menos ficar perto de Keith quando ia dormir, sempre se escolhia no canto, não eram poucas as vezes que caiu no chão por estar muito perto da beira.

Desde os últimos acontecimentos Keith não vinha dormindo muito, então naquela noite o cansaço extremo o venceu e ele dormiu como uma pedra. Amelie estava mais domada, talvez depois de tanto quebrar a cara, literalmente muitas vezes, por não ouvir o que ele dizia, então decidiu controlar seus impulsos, ao menos por um tempo. O cansaço era muito, mas sua mente não descansava. De repente ouviu leves batidas na porta, era o meio da madrugada, não sabia o que esperava do outro lado, então levantou-se rapidamente e pegou sua espada, caminhando em passos leves até a porta, quando abriu apontou a lâmina para frente, quase acertando o indivíduo, até perceber que era Flint com um lenço na cabeça, que logo tratou de tirar. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele a abraçou em um abraço apertado.

— Iremos atacar um forte de vigilantes daqui a uma semana, a retaliação irá começar, se prepare. — Quando ele olhou para ela, seu olhar era terno, ele apenas colocou o lenço novamente e desapareceu, saindo da estalagem pulando pela janela que havia no corredor.

Amelie ficou estática parada na porta, até mesmo deixou sua espada cair com o choque.

Passou alguns minutos parada ali fitando o corredor escuro até conseguir pegar sua espada novamente e fechar a porta, virando-se para olhar para Keith e ter certeza de que ele ainda estava dormindo. Seu marido dormia como um anjo, exausto, porém um anjo.
A noite passou com Amelie andando de um lado para o outro enquanto sentia de súbito tudo voltando de uma vez, antes estava voltando aos poucos, mas agora como um soco, retornou tudo de uma vez só e ela não sabia organizar as coisas dentro de si. Alternava entre tristeza, ódio e felicidade por finalmente conseguir colocar os planos de Flint em prática, sabia que seria gigantesco.

Amanheceu, as luzes fracas do sol entravam pela janela e Amelie estava deitada na cama usando apenas sua camisola branca de linho enquanto observava Keith dormir com um olhar apaixonado. Nunca havia deixado de amá-lo, mas sentia como se sua essência houvesse retornado depois daquela revelação, como se o prospecto de ser ela novamente e de atacar e se vingar de tudo o que fizeram, fosse o botão que era necessário apertar para que a ruiva se reencontrasse. Ele dormia tranquilamente, embora fosse por volta de oito da manhã, a luz do sol entrava muito fraca por ser outono.

Decidiu então que estava cansada de esperar, mesmo com olheiras nos olhos, estava tão animada que não conseguia dormir. Teria que acordar Keith, então começou a lentamente depositar beijos por seu rosto. Bochechas, queixo, lábios...

— Amor... — Disse carinhosamente entre a pausa, voltando a beijar seu rosto de novo enquanto as jóias que havia colocado no cabelo tilintavam e a pouca luz do sol próxima da cama iluminava seus cabelos ruivos e os olhos ciano.

Continuou esperando ele acordar, freneticamente beijando seu rosto e ao perceber que ele estava despertando, Amelie afastou o rosto um pouco e o fitou, observando ele despertar com um sorriso imenso no rosto. Havia, enfim, se encontrado.

Amelie observou enquanto ele despertava, confuso. Bem, ela não era uma pessoa fácil de se entender de qualquer forma, nem ela mesma se entendia. Também o observou se sentar, o que lhe deu um pouco de ravia, pois ela queria muito estar perto dele, isso tirou um suspiro da pirata, porém não houveram palavras. Sentou-se num pulo, se sentia tão mais livre agora que conseguia usar roupas folgadas sem se sentir extremamente desconfortável novamente.  

Se espreguiçou, bocejando. Estava muito cansada, porém sua mente corria há quilômetros por hora e não conseguia descansar. Olhou para Keith depois que bocejou e decidiu se aconchegar em seu ombro, o abraçando.

— Não tá sonhando... — Disse com a voz baixa e gentil. — Flint veio aqui durante a madrugada e disse que atacaremos o forte na próxima semana. O plano dele vai começar, finalmente. — Ergueu a cabeça para sorrir para Keith. — E o prospecto de vingança e acabar com todos eles foi o necessário pra eu conseguir pescar a antiga Amelie dentro daquele oceano negro em que ela estava adormecida, arranhando para sair de novo. — O modo que falava, mesmo de algo tão sério, era bem casual.

Bocejou novamente, deslizando a cabeça até seu pescoço e fechando os olhos.

— Eu tive bastante tempo pra pensar durante a noite e eu tenho um plano pra hoje! — Exclamou animadamente. Embora estivesse muito cansada, provavelmente só iria conseguir desligar-se quando desmaiasse de exaustão.

Mexia os pés animadamente na cama sentindo o cheiro do homem que amava de olhos fechados. Era maravilhoso estar perto dele novamente depois de tanto tempo, sentia que uma parte sua, aquela parte que estava adormecida, implorava por este momento há muito tempo. Tudo o que aconteceu quando ela estava catatônica era um borrão, os dias foram borrões, não lembrava nitidamente de suas palavras, exceto das palavras cruéis que usou contra Keith, isto estava a comendo viva. Suspirou e sentou-se direito para fitá-lo, embora isso tenha afastado o abraço.

— Desculpa... Pelo que eu falei aquele dia... Você não é um impuro de merda, insuportável, cachorro ou qualquer coisa do tipo. Você nunca foi. — Franziu o cenho enquanto falava, sem conseguir esconder seu arrependimento e sua dor.

Iria voltar àquele ciclo vicioso de se culpar, se irritar consigo mesma e sair explodindo como uma bomba por coisas que ela mesma fez, mas respirou fundo e decidiu que aquele não era o dia para isso, se resolveria consigo mesma em outro momento, então esboçou um sorriso brincalhão e tocou com a ponta do dedo indicador no nariz de Keith.

— É uma surpresa! Você vai gostar, eu prometo. — E Amelie nunca quebrava uma promessa. Porém ouvir o que ele disse sobre ela estar ali novamente, foi como um tiro no peito, sua expressão brochou por completo. — Eu sinto muito... Deve ter sido muito doloroso lidar comigo daquele jeito durante meses, eu não sei o que dizer pra consertar isso... — Colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Mas talvez hoje seja um começo! — Então voltou aquele sorriso animado, o humor de Amelie era assustadoramente maleável.

Ela pulou da cama ouvindo as joias que não colocava há muito tempo no cabelo tilintar com o movimento rápido e súbito e foi até o armário tirando um pano de linho bege e algumas frutas, colocando em cima da mesa e embalando como uma bolsinha.

— Faz um café da manhã bem gostoso! Cuidado pra não se colocar dentro da panela. — Piscou maliciosamente, sabendo que ele iria corar com a brincadeira e simplesmente se despiu completamente, como se não fosse nada demais, casualmente caminhando até o guarda-roupa e começando a se vestir novamente. Ao terminar de colocar as botas, sentada na cadeira da mesa, pegou seu charuto e acendeu sem muita dificuldade, lançando um olhar brincalhão para Keith enquanto cruzava as pernas.

Amelie continuava fumando seu charuto tranquilamente enquanto observava Keith se dirigir até o fogão improvisado para começar a cozinhar. Não fazia ideia do que se passava em sua cabeça, porém esperava que não fossem coisas ruins. Quando ele retornou com a comida, ela observou por alguns segundos até que se levantou de súbito, segurando o charuto na boca enquanto ia até o armário. Procurou por um curto período, desengonçada como sempre era acabou fazendo um barulho imenso enquanto as panelas se ferro se chocavam caindo uma em cima da outra dentro do armário, até que achou uma bolsa grande de couro. Voltou até a mesa e colocou o pano com frutas dentro da bolsa e em seguida enrolou os pratos em panos de linho também, com cuidado para não bater na comida, colocando dentro da bolsa. Em seguida suspirou e olhou para Keith, seu coração derreteu, ele era tão adorável.

— Isso vai também, vamos pra um lugar especial, acho que você nunca viu. — Acariciou o cabelo do marido, beijando sua cabeça em seguida. — Agora vista-se, você não vai desse jeito. — Cruzou os braços após dar a ordem e continuou fumando o charuto, esperando ele estar pronto para sair.

Não demorou tanto para que ambos estivessem prontos e assim que Keith terminou de se arrumar, Amelie jogou a bolsa de couro para ele, afinal de contas ele era mais forte agora e o puxou pela mão para fora da estalagem. Começou a procurar uma carruagem e quando encontrou, entregou algumas moedas e sussurrou o local no ouvido do homem que os levaria, entrando em seguida.

A viagem não era longa, porém ia para fora da área urbana da capital, Amelie até adormeceu por algum tempo com a cabeça apoiada no ombro de Keith. Subindo uma das colinas da área rural, existia uma grande plantação de lavanda, muitas árvores e era possível ver a capital inteira, até o mar, daquela altura. Amelie fez sinal para o homem ir embora e puxou Keith pelo braço, quase saltitando de animação enquanto o trazia para uma área onde uma árvore os acolhia.

— Eu costumava vir aqui quando era adolescente. É lindo, longe de tudo, no verão é mais bonito ainda. Eu costumava dormir embaixo dessa árvore, ela é tão antiga... — A ruiva olhou para cima, passando a mão pela árvore e em seguida voltou-se para Keith. — Bom, eu tô com fome. — Sentou no chão, fazendo sinal para ele sentar também, havia esquecido de trazer um pano para colocar embaixo deles, mas não se importou muito. — Esse é um dos meus lugares preferidos e eu queria compartilhar com o amor da minha vida. — Sorriu carinhosamente para ele enquanto desfazia os nós que guardavam os pratos.

Assim que conseguiu e entregou o prato dele, Amelie começou a comer como se nunca houvesse comido na vida. Bem, fazia tempo que comia direito, então era compreensível. Encheu tanto a boca que foi difícil mastigar.

O vento ali, por ser mais alto, era mais forte, porém as plantações de lavanda atrasavam a velocidade e traziam um cheiro maravilhoso para onde estavam. Amelie fechou os olhos sentindo o aroma delicioso e o vento balançando levemente seu cabelo, o suficiente para as joias em seu cabelo tilintarem como uma música. De repente sentiu o abraço de Keith e se aconchegou em seus braços desejando que ele não a soltasse, mas ele a soltou depois de um tempo, o que a fez abrir os olhos e observou ele voltar a comer, então a ruiva decidiu fazer o mesmo. Começou a devorar a comida sem pensar duas vezes enquanto observava a paisagem.

Sorriu para Keith ao ouvi-lo, olhando em seus olhos azuis.

— Eu também te amo pra sempre. — Tocou a ponta de seu nariz com o dedo, mas logo percebeu que seu dedo estava sujo e deu uma risada abafada. — Ops... — Colocou a comida no prato novamente e se aproximou de Keith, lambendo seu nariz onde havia sujado casualmente, como se não houvesse passado meses sem sequer se aproximar dele.

Voltou à posição anterior e continuou comendo, porém olhando para ele desta vez. Parecia que iria chover eventualmente, o céu estava começando a ficar nublado, mas isto não tirava a beleza do lugar. Amelie se sentia completamente plena, não se importava com o que fosse acontecer no futuro, se acabasse caindo em batalha, seria contra aqueles vermes, então seria uma morte digna em sua visão. Se sobrevivesse, teria os matado. Então era uma situação de vantagem em ambas as possibilidades.

— Sim, precisamos vir aqui mais vezes. Você não vai gostar disso, mas vim com Logan aqui uma vez, mas ele é um imbecil e não soube apreciar a beleza do lugar, foi bem antes daquilo acontecer. Aquele merda insuportável dizia que era só mato e perda de tempo, mas eu não acho isso. É como um mar violeta, o vento faz as plantas dançarem como ondas, a diferença é que não cheira como sal e água. — Riu para si mesma com o último comentário, porém era visível o quanto gostava daquele lugar. Se pudesse escolher um lugar para passar o resto da vida, seria ali, embaixo daquela árvore, com Keith.

Comeu o mais rápido que pôde e ao terminar de comer, guardou o prato de ferro dentro da bolsa de couro novamente, deitando-se no chão e apoiando a cabeça no colo de Keith enquanto cruzava as pernas. Os raios do sol que escapava pelas nuvens refletiu nos cabelos vermelhos como fogo e os olhos ciano de Amelie, mas embora incomodasse um pouco, ela não se escondeu da luz.

— Sabe... Quando eu fui pega, durante todo o tempo em que estive lá, eu imaginava que estava em nossa cama, do seu lado, te observando dormir. Em algum lugar no fundo daquele oceano negro, eu senti tanto sua falta, mesmo depois de voltar pra casa. Essa madrugada quando te observei dormir, percebi que eu não apenas havia me reencontrado, mas minha casa parecia uma casa novamente e eu não falo da estalagem, minha casa é você. — Disse isto na voz mais séria, porém gentil que conseguiu e esboçou um sorriso depois, olhando nos olhos de Keith como se fossem os diamantes mais lindos do universo.

Amelie gostava de ouvir as partes boas, se é que existiam partes boas, do passado de Keith. Gostava de ouvir as histórias de seu passado como ajudante de caçador, para ele poderia não ser nada demais, mas para Amelie era a coisa mais interessante do mundo. Tudo sobre ele era excepcionalmente interessante para ela. Ouvia com atenção enquanto ele falava sobre como gostava do ar livre, mesmo depois de tanto tempo, ela não fazia ideia. Isso fez ela se perguntar o que mais ela não sabia sobre ele, mesmo sendo pequenas coisas como esta.

— Temos que sair de casa pra fazer coisas assim mais vezes também. — Ela sorriu, piscando algumas vezes por conta da luz solar. — Não apenas de oceano se vive um humano... Ou um meio lycan.

Iria rir e continuar falando quando foi surpreendida sentindo os lábios de Keith nos seus, sentindo seu beijo caloroso e apaixonado, vivo. Fazia tanto tempo que não sentia isto, parecia que dentro de si algo ansiava por seu toque, porém as barreiras que haviam se erguido não deixavam esta parte transparecer até agora. Delicadamente Amelie levou as mãos até o rosto de Keith, aprofundando o beijo com uma paixão imensa, que não cabia em seu peito. Seu coração estava tão acelerado que achou que iria vomitá-lo. Enterrou os dedos nos cabelos bagunçados de Keith, o puxando mais para perto, porém parou de súbito para buscar oxigênio, se afastando um pouco, mas ainda muito próxima.

— Bem... Eu tenho outros planos pra hoje, o dia só começou. — Piscou maliciosamente para ele antes de esticar-se para pegar uma maçã e começar a comer.

Amelie começou a fazer carinho no rosto e cabelo de Keith com a mão livre, enquanto devorava a maçã.

— Você é a coisa mais linda que eu já vi e olhe que eu já vi muitos tesouros, mas você é o mais precioso de todos eles.

Aquela maçã não estava tão boa assim, era aquelas secas e não muito saborosas, o que fez Amelie se frustrar um pouco, mas não iria deixar uma maçã destruir aquele dia. Sentiu Keith beijando seu rosto e franziu o cenho confusa, sem entender o que ele queria. Parecia um cachorro farejando um pedaço enorme de carne e ela achou isso um pouco engraçado, porém não disse nada. Quando ele enterrou a cabeça em seus cabelos e disse aquelas palavras, fazendo a pergunta no final, Amelie apenas começou a acariciar seu cabelo enquanto terminava a maçã.

— Não, vamos continuar aqui. Os outros são pra mais tarde. — Riu consigo mesma, jogando a maçã para o lado e o abraçando como um abraço de urso. — Se a gente se molhar com a chuva pelo menos dá pra tirar a roupa.

Gargalhou alto ainda o abraçando. Abraçá-lo era uma terapia gratuita, se sentia segura nos braços dele, como se nada pudesse alcançá-los ou machucá-la novamente. Suspirou, mas não um suspiro de frustração, um suspiro apaixonado.

— Você vai gostar. — Afastou o rosto ainda o abraçando, se dependesse de Amelie não o soltaria nunca mais. — Por enquanto podemos ficar aqui sentindo o cheiro de lavanda e comendo frutas até a hora que quisermos.

Amelie estava muito orgulhosa de si mesma por conseguir sair de um buraco tão profundo, lutar tão bravamente, passar por tantas coisas horríveis e ainda encontrar motivos para sorrir, o maior e mais importante sendo o homem à sua frente.

Quando Keith olhou para a paisagem, Amelie fez o mesmo. As plantações lilás dançavam levemente com o vento, as nuvens começaram a ficar mais densas e algumas folhas da árvore em que estavam caíam de tempos em tempos por ser outono. Hahle era um lugar lindo na área rural, longe do caos urbano medieval e da miséria que assolava Terus ou qualquer outra cidade, por menor que fosse.

Ouviu Keith comentando sobre como seria bom viver ali, parecia um sonho. Do jeito que agora eram foras da lei, e o pior: do jeito que Amelie era bem mais procurada depois da segunda vez na mão dos vigilantes, encontrar um lugar para descansar e viver como duas pessoas normais parecia surreal. Nunca iriam ter paz, nunca iriam ter aquela paz e Amelie se sentia culpada de certa forma por trazer Keith para este caminho onde não havia volta. Depois que Flint começasse sua retaliação as coisas iriam ficar ainda mais complicadas, sequer sabia se seria seguro continuar na estalagem, não sabia qual era a solução de Flint para garantir a segurança da tripulação, ele estava completamente insano e nada o pararia agora. Então aquela casinha em um campo de lavanda e aquele breve sonho era apenas um sonho. Talvez se Amelie nunca houvesse se tornado pirata... Tudo isto se passava por sua cabeça, estava completamente distraída com cara de paisagem quando Keith a beijou novamente.

Ela sorriu entre o beijo e o deixou explorar sua boca o quanto quisesse, também ansiava por seu toque, seu beijo, seu corpo, seu afeto... Como se houvesse acabado de acordar de um coma consciente e tudo o que conseguisse pensar fosse no quanto sentia falta daquele homem. Amelie levou a mão esquerda até seu rosto, acariciando enquanto tentava se concentrar no beijo. Fez o beijo ficar mais intenso e feroz, levando a mão de seu rosto até sua parte baixa com força, enquanto o desejo queimava dentro de si, mas se lembrou de onde estava e se afastou de súbito, limpando a garganta, com o rosto completamente vermelho. Havia perdido todo o bronze nesses meses e estava com a pele bem alva, então era muito fácil ver qualquer tipo de marca ou ruborização e agora Amelie parecia um tomate.

— Não vamos traumatizar nenhuma criança, sabe-se lá quem vive por aqui.— Tentou rir para esconder seu desconcerto, mas apenas engoliu em seco e coçou a nuca.  

Amelie sentou seu rosto esquentar mais ainda quando Keith falou sobre sua condição, era difícil perceber quando ela corava por baixo da pele queimada, mas agora se sentia exposta e isto apenas piorava a situação. Seus olhos se arregalaram um pouco e ela abaixou a cabeça, tentando esconder o rosto atrás do cabelo, fingiu estar observando as frutas que havia trazido enquanto ele falava.

Ao perguntar se Amelie já havia caçado, ela pensou por um tempo, nunca havia entrado em florestas, se o fizesse algum dia provavelmente iria se perder, sua vida sempre foi no litoral e não entre árvores ou armadilhas, porém achava isso adorável. Olhou para ele entre as mechas de cabelo ruivo, ainda de cabeça baixa e deu de ombros.

— Minha vida sempre foi perto do mar, amor. Nunca entrei numa floresta assim, muito menos cacei. — Era uma pergunta estranha para ela, mas deduziu que ele apenas tentava puxar assunto e desfocar antes que acabassem se devorando no meio de um campo com casas perto. Achou isso engraçado, então riu sozinha, porém seu sorriso se apagou quando ele perguntou sobre a rã. Amelie fez uma careta de desgosto e confusão ao mesmo tempo, coçando a nuca novamente. — Eu não sei sobre os outros, mas eu nunca comi sapo... — Disse com um tom estranho, como se não estivesse entendendo muito bem. — Você já comeu sapo? — Pendeu a cabeça para o laço, curiosa. Aquilo não parecia uma refeição muito boa, então Amelie estava com o cenho franzido, confusa.

De repente o vento ficou mais forte e começou a balançar os cabelos de Amelie lentamente como uma onda, sentiu o cheiro de lavanda mais intenso e pegou uma maçã, começando a comer. Logo se frustrou por ser uma maçã seca novamente que fazia "creck" e suspirou. Sentiu alguns pingos de chuva grossos na roupa.

— Você quer ficar na chuva ou tentar encontrar alguma civilização aqui perto? — Ela riu, achando a situação hilária. Ainda assim, aquela chuva não iria destruir o passeio dos dois, qualquer coisa com Keith era uma bela aventura... Quando eles não corriam risco de vida, é claro.

Ouviu Keith contar a história com um olhar arregalado e curioso, gostava muito quando ele contava coisas ou quando a explicava algo, embora fugisse o tempo inteiro de aprender a ler. Parecia uma criança curiosa quando ele contava suas histórias, ela adorava ouvi-las, eram partes dele afinal e ela amava cada parte dele.

As gotas começaram a ficar mais rigorosas e Amelie gostava de água, então não se importava com isto.

— Eu gosto de chuva! Dá vontade de dançar. — Já estava acostumada com um marido super protetor, qualquer passo que tomava ele estava do lado falando sobre como ela poderia ter feito isto de maneira mais segura, enquanto Amelie pulava numa poça sem se importar se era um buraco. Colocou rapidamente as frutas e os pratos na bolsa de couro e entregou-a a Keith.

O cheiro de lavanda inundava suas narinas, ao mesmo tempo do cheiro de terra molhada. Combinação estranha, porém estranhamente deliciosa ao olfato. A chuva ficava cada vez mais densa, talvez fosse aquele tipo de chuva forte que dura alguns minutos e em seguida desaparece, depois de expressar toda a sua fúria. Amelie levantou e logo estendeu a mão para Keith, embora estivesse mais fraca que era antes de sua tragédia, recuperava as forças aos poucos, precisava treinar novamente. A paisagem que antes era colorida, se tornou cinza. Começou a caminhar rápido puxando Keith pela mão como fazia no passado, olhando ao redor tentando encontrar algum abrigo, porém tudo o que via eram campos densos de lavanda até o horizonte.

Chegou em um ponto onde Amelie estava completamente ensopada e o cabelo grudava em seu rosto, a roupa pesada se tornou mais pesada ainda. A pirata cerrou os olhos mais um pouco, já fazia ao menos meia hora que estavam andando na lama, não era bem esta manhã que Amelie havia planejado, mas tentava permanecer positiva, era apenas um imprevisto. Olhou ao redor e viu uma casa de pedra ao longe, não era grande e possuía alguns animais como vacas e porcos ao lado, juntamente com uma pequena plantação de trigo que parecia ser de uso da família, porém assim como previsto, também possuía uma plantação de lavanda.

Amelie sorriu para Keith e o puxou em direção à casa, os pobres animais sofriam com a chuva, mas isto não a incomodou tanto assim. Ao chegar na porta, ela já se preparou para o possível tratamento que iria ter por suas vestes, estava acostumada, então isto tirou um suspiro da ruiva. Bateu na porta uma vez, nada. Duas vezes, nada. Três vezes, nada. Olhou para Keith aflita, sentia que havia algo errado, mas continuou tentando bater e bater, até que ouviu o barulho da tranca se abrindo na porta de madeira e a porta rangiu, se abrindo lentamente. Do outro lado surgiu uma criança que parecia ter seis anos, porém naquela época era difícil dizer, já que a infância era tão vulnerável e a maioria das crianças morria. Amelie sentiu um cheiro horrível vindo de dentro da casa, fez uma careta e olhou melhor para a criança que fitava os dois em silêncio, sem conseguir falar. Parecia apavorada. Seu rosto estava pálido, haviam olheiras horríveis embaixo de seus olhos, suas roupas simples estavam sujas de sangue e ele era muito magro, claramente desnutrido. Alguma coisa havia acontecido.

Amelie não pensou duas vezes antes de colocar o menino para o lado e entrar rápido dentro da residência, parecia que ele estava sozinho há dias porque tinham pratos de comida no chão, tudo estava revirado, parecia ter acontecido uma briga muito séria e toda a casa estava revirada, mas havia um cheiro de podre horrível, cheiro de cadáveres em decomposição. Amelie caminhou lentamente em direção ao cheiro e logo encontrou uma mulher no chão próxima a lareira com um cobertor em cima, como se estivesse dormindo, a pirata imaginou que a criança havia colocado aquele cobertor. Seu coração apertou. Continuou explorando a casa lentamente, até que encontrou mais quatro corpos, um homem mais velho que deveria ser o patriarca e mais três crianças de idades variadas. Todos com cobertores.

Amelie virou-se para Keith que já havia entrado e o olhou com um olhar extremamente aflito. Aquela criança havia ficado ali com a família inteira morta, cheios de mordidas pelo pescoço ou pulso, completamente drenados de sangue, sabe-se lá por quanto tempo. Ninguém havia vindo ajudar, ele provavelmente estava sem comer há dias e ainda usava uma roupa ensanguentada. Aquela era a realidade de Hahle, não importa o quão belo o reino pudesse ser.

Amelie suspirou quando Keith a abraçou, se sentia segura em seus braços, então retribuiu o abraço o mais apertado que conseguiu. Quando ele se afastou, ela olhou para o menino que levava os olhos assustados para os dois estranhos vestidos de preto. O cheiro incomodava o nariz de Amelie, sabe-se lá quanto tempo aquela pobre criança havia passado convivendo com os corpos da própria família, sem conseguir cozinhar ou alcançar onde guardavam comida, se é que tinham alguma dada a aparência extremamente simples da casa. Não duvidava que todas as crianças dormiam apertadas num único e pequeno aposento.

Ouviu Keith falar sobre enterrar ou queimar os cadáveres, se dependesse de Amelie ela os deixaria ali apodrecendo e levaria a criança daquela situação terrível, porém ele estava certo, não era a melhor alternativa. Apenas observou enquanto ele ia até o garoto e os apresentava. Os olhos da criança iam de Keith para Amelie freneticamente, arregalados de medo. Provavelmente não dormia há dias, pois suas olheiras estavam fundas e escuras.

— Eu sou Tristan, aquela é minha mamãe... — Apontou para a mulher morta perto da lareira. — Papai... Charlotte... Hector... Oliver... — Foi apontando para cada um deles enquanto dizia seus nomes. — Eles estão dormindo há muito tempo, eu tentei acordar, mamãe sempre acorda antes que amanheça, então eu tô dormindo com ela quando anoitece, mas fico com medo de voltarem... Eles machucaram e fizeram eles dormirem. — Tristan falava de uma maneira tão inocente que apertou o coração de Amelie, ela queria abraçá-lo e tirá-lo dali. Quanto mais tempo passava naquele lugar, mais difícil seria para ele. Se aproximou do garoto também, se abaixando enquanto ele comia a fruta com ferocidade, estava faminto.

— Eles não vão acordar. — Tentou ter um tom gentil ao falar isto, mas não saiu tão gentil assim. Tristan parou de comer e seus olhinhos azuis começaram a encher de lágrimas. Ele olhou para Amelie nos olhos e depois para Keith. — Essas coisas ruins que machucaram eles, são vampiros, eles matam. Estão mortos. — A ruiva explicava de uma forma mais ríspida e direta do que Keith. Lágrimas começaram a rolar pelo rosto do menino e ele deixou a fruta cair no chão, em seguida caindo também, sentado, envolveu as pernas e começou a chorar com a cabeça enfiada nos joelhos. Chorava tanto e tão alto.

Amelie se sentiu extremamente culpada e franziu o cenho assistindo a criança chorar. Começou a levar a mão lentamente até Tristan, tocando delicadamente em suas costas, sentindo os ossos de sua coluna e costelas de tão magro que ele era, começando a acariciar suas costas enquanto ele chorava.

— Tudo bem, Tristan. Você tá seguro agora, eles não vão te encontrar nunca mais. Já matamos um, sabia? — O menino pareceu se surpreender com aquilo e levantou a cabeça, fitando Amelie com os olhos e nariz vermelhos como um tomate, fungou e olhou para Keith também. Era tão branco quanto Keith, com as bochechas rosadas e o cabelo curto ruivo. Uma ironia do destino ele também ser ruivo.

O menino fez que não com a cabeça para Keith, lembrando de sua pergunta.

— Tem um lugar com barraquinhas aqui perto, eu gostava de ir pra comprar uva roxa com mamãe... — O olhar dele ficou mais triste ao mencionar sua mãe, a voz ficou mais baixa. — Vocês podem ir nas barraquinhas quando a chuva diminuir, passam "carruagem" lá às vezes.

Amelie não conseguia simplesmente ir embora e deixar aquela criança ali, seu instinto materno gritava. Mal conhecia a criança, porém sentia que o destino ou seja lá o que fosse, havia colocado ele em seu caminho, de uma maneira extremamente trágica, já que ela não podia ter filhos e se pudesse não seriam filhos "normais". Talvez aquela criança humana tenha sido um presente que no fundo ela almejava, mas não demonstrava, embora tenha desabado quando descobriu sua infertilidade. Levantou-se, determinada e trocou de olhares com Keith, levando os olhos para Tristan novamente.

— Você vem com a gente. — Foi a única coisa que disse, ignorando completamente a família morta do menino e seu trauma. Talvez fosse um pouco egoísta... Porém não se importava.

Parecia que Keith compartilhava da dor de Tristan, Amelie também, porém não se permitiu demonstrar isto, embora seu coração apertasse com toda aquela situação. Tudo o que queria fazer era sair dali o mais rápido que conseguisse e tirar os dois daquele lugar maldito. Ouviu Keith falar com o menino e apenas cruzou os braços suspirando, enquanto ele terminava de falar com... Os cadáveres. Ela não via sentido em falar com cadáveres, talvez por estar muito acostumada a matar e ver cadáveres, que muitas vezes morreram por sua própria mão. Para ela eram apenas corpos, cascas vazias de quem foram um dia, mas seu marido via as coisas de maneira muito diferente, sempre viu, sequer sabia porquê se surpreendia à este ponto.

Passou a mão pelo cabelo, sentindo as tranças e joias que tinha nas mechas esperando impaciente ele terminar seu monólogo até que, como lendo sua mente, Keith decidiu que iriam sair dali. A sintonia dos dois era inacreditável, sequer precisavam falar para se entender, como se fossem a mesma essência em corpos separados. Pegou a bolsa de couro, já que Keith estava levando a criança e em seguida acendeu uma das tochas que havia na casa, acendendo na lareira e começando a colocar fogo nos corpos e móveis de madeira para que não houvesse nenhum rastro do que aconteceu, porém enquanto fazia isto encontrou um colar de ferro com um pingente que parecia importante, queria que Tristan ao menos possuísse algo que lembrasse sua família no futuro, quando fosse maior e pudesse usá-lo. Não sabia bem o que fazer com o menino, tudo o que sabia era que agora não iria mais soltá-lo não importa o que o futuro lhes guardasse, agora ele estava em boas mãos, talvez mãos perigosas em uma vida não digna e igualmente perigosa, porém mãos que se importavam com seu bem estar e para Amelie isto deveria ser o suficiente.

— Vamos. — Falou para Keith enquanto passava por ele e deixava o fogo que se alastrava pela humilde casa para trás. Percebeu que Tristan chorava enquanto observava as coisas queimando, mas ele iria sobreviver.

Abriu a porta e foi na frente, fazendo sinal para ambos a seguirem. A chuva ainda estava muito forte, porém precisavam sair dali e voltar para casa, para cuidar da pobre criança. Não era o dia agradável e amoroso que havia planejado aquela madrugada, mas parecia que o destino tinha outros planos para eles e não iria questionar, daria seu jeito. Começou a caminhar mais rápido, sentindo o vento frio e impiedoso batendo contra suas costas, trazendo mais chuva, porém já estava completamente ensopada, então não fazia muita diferença.

— Pra que lado, garoto? — Virou-se para Tristan que chorava copiosamente nas costas de Keith enquanto a chuva se misturava com suas lágrimas e molhava seu cabelo ruivo, um pouco mais claro que o cabelo de Amelie. Ele apontou para a direção que deveriam ir e ela apenas continuou, determinada. Não que estivesse ignorando o menino ou seu sofrimento, mas precisava focar em tirar os três da chuva logo.

Amelie apressou mais o passo para ir na frente, ela era muito rápida apesar das roupas pesadas e logo estava há alguns metros dos dois, buscando com os olhos molhados o local indicado, até que depois de uma caminhada de mais ou menos vinte minutos encontrou. Não eram barraquinhas como ele disse, talvez falasse assim porque em sua concepção infantil eram barraquinhas, mas era um mercado. Não tão grande quanto o mercado central, era apenas um mercado para os moradores da região. Os vendedores estavam nas barracas, pois não havia outra opção, então Amelie saiu perguntando onde surgiam carruagens por ali e apesar de a olharem com um olhar feio, lhe informaram que passavam de tempos em tempos, não era tão frequente quanto na área urbana, então ela apenas voltou-se para Keith e Tristan.

— Vamos ter que esperar... Na chuva. — Resmungou, cruzando os braços, porém ficou parada, batendo o pé com a bota suja de lama. Provavelmente achavam que aqueles dois piratas tinham sequestrado o menino, mas Amelie pouco se importava com isto.

Demorou até uma carruagem surgir, mas ela logo fez sinal e correu até ela, dizendo ao homem seu destino e ajudando Tristan a sentar-se, enquanto Keith entrava. O menino não parava de chorar com sua nova realidade, tremia de frio e nervosismo. Amelie queria aquecê-lo, mas estava tão ensopada que não conseguiria sucesso algum com isto.

Logo a carruagem chegou até a área urbana de Terus e ela indicou o local onde deveria parar, estava chovendo ali também, porém não tão forte quanto na área rural. Estava frustrada por aquela chuva ter arruinado o que havia planejado para aquela manhã, mas naquele ponto já era hora do almoço e agora tinham uma nova responsabilidade. Parecia que as coisas nunca podiam ser calmas.

Ela saiu primeiro, pegando Tristan no colo enquanto ele continuava chorando e tremendo e o envolveu com os dois braços o mais forte que conseguiu, deixando a bolsa para Keith desta vez e entrando na estalagem. A dona olhou para ela de maneira estranha, porém não falou nada, já tinha medo dela, não iria se arriscar. Foi difícil subir as escadas com uma criança nos braços, mas ele era leve pela falta de comida e se agarrava à Amelie como se ela fosse desaparecer a qualquer momento. Acabaram molhando a escada e o piso de madeira enquanto caminhavam até sua "casa", ao abrir a porta, o menino continuou se segurando em Amelie e ela precisou se abaixar e sentar no chão para fazê-lo descer, ele chorava tanto que tossia.

— Aqui nada vai te machucar, é sua casa agora, a não ser que não queira que seja... — Ela esperava que ele quisesse, porém não podia obrigá-lo a ficar se o menino quisesse ir. — Keith vai comprar algumas roupas pra você e eu vou esquentar a água pra te limpar, tá? Depois disso ele vai te fazer bastante comida. Não se preocupe, temos bastante kham, você não será um problema. — Esboçou o melhor sorriso que conseguiu, passando a mão pelo cabelo de Tristan e depois lançou um olhar para Keith, como se dissesse para ele fazer o que ela disse que ele iria fazer. — É perigoso lá fora, volte logo. — Disse rápido, antes de voltar a atenção para Tristan.

Ele estava tremendo e chorando, então Amelie pegou um cobertor aleatório no armário e enrolou na criança, colocando-o na cama. Ainda estava fraca, mas ele estava muito leve também, então não foi tão ruim assim. Sorriu para o menino e foi até a lareira, pegando uma panela grande e redonda de ferro cheia de água, colocando para esquentar. De tempos em tempos olhava para ele e o som de seu choro desolado preenchia o ambiente. Não imaginava, quando saiu, que voltaria com uma criança.