Por alguma razão além de seu próprio conhecimento, Amelie se sentia fraca a partir dos últimos dias de viagem, uma fraqueza que nunca havia sentido antes, como se seu corpo estivesse lentamente desistindo de si mesmo. Não era uma boa hora para isto acontecer, dada as circunstâncias de estar finalmente em Edelweiss com Keith e Tristan, tentava não pensar muito nisto pois poderia acabar arruinando a viagem inteira se falasse o que sentia, estavam ali por um propósito, se contasse que se sentia doente, seu marido iria perder o foco com preocupação e querer retornar a Hahle antes mesmo de conseguir qualquer resposta ou sequer pisar naquele solo frio, sem falar que teria que pedir a ajuda de Elliot novamente, o que era algo que ela definitivamente não queria fazer. Talvez fosse apenas por conta da viagem longa, talvez não fosse nada com que se preocupar, afinal de contas quantas vezes eles saíam de Hahle para ir à outros reinos? Sem falar que aquela terra era extremamente fria para alguém que estava acostumada com o calor tórrido de Hahle no verão, talvez houvesse pego alguma gripe que a deixou com fraqueza ou algo parecido. Além disso, mesmo comendo a comida de merda daquele navio durante a viagem, percebeu uma perda de peso notável e parecia que seu corpo estava começando a ficar completamente desbalanceado, pois apesar de perder peso, sentia como se estivesse inchada em algumas partes, as palmas das mãos estavam mais vermelhas que o normal e a última vez que se olhou no espelho notou que os glóbulos oculares começavam a tomar uma tonalidade amarelada. Talvez estivesse mesmo doente, mas ninguém havia percebido ou comentado, talvez Keith estivesse perdido demais em seus próprios pensamentos para notar, então se manteve em silêncio sobre o que estava sentido fisicamente.

Talvez fosse apenas uma virose que se pega em navios e ela teve o desprazer de contrair, o que não era anormal, então não fez nenhuma  menção sobre, não queria que aquela viagem fosse em vão.

Assim que chegaram na capital de Edelweiss, notou que as casas eram bem diferentes de Hahle, como se fossem mais rústicas, as pessoas que andavam ao redor pareciam acostumadas com o frio, embora se protegessem dele com vestes estranhas, nem um pouco parecidas com o que ela mesma usava, haviam montanhas e fiordes por todos os lados de Vriemen e conseguia ver o a própria respiração, que agora era mais fraca que antes, no ar quando respirava. Keith havia comprado roupas de inverno para os três, mas simplesmente se negava a usar aqueles gorros, embora ele e Tristan estivessem extremamente fofos os usando e o próprio frio fizesse as bochechas do marido e da criança ruborizarem. Seu próprio rosto estava ruborizado, mas por outros motivos. Amelie só queria encontrar uma cama quente e deitar-se, sentia como se suas pernas fossem ceder a qualquer momento, mas não podia dizer isso.

— Você tá muito lindo nesse frio, amor. É como se fosse feito pra esse lugar esquisito e não pra o calor insuportável de Hahle no verão. Nem consegue se bronzear no navio. — Tentou fazer uma piada e esboçar um sorriso, fingindo estar em seu estado normal.

Então suspirou e olhou ao redor quando ele perguntou por onde começar. Por onde começar em um lugar que nunca conheceu e nunca pisou? Não sabia de nada sobre Edelweiss, mas precisavam começar em algum lugar, sair andando como formigas perdidas talvez. As pessoas, ou melhor, lycans, que passavam pelos três olhavam estranho para Amelie, como se fosse uma intrusa ou algo do tipo, talvez se perguntando o que uma humana fazia ali. Já ficava desconfortável quando olhavam estranho para ela em sua própria terra por ser uma pirata e se vestir como uma, agora tinha que lidar com eles a julgando por não ter cheiro de lycan. Keith parecia passar despercebido por ter mais sangue lycan, quase como se não fosse possível notar seu lado humano e ninguém dava muita atenção a Tristan, mas era como se Amelie fosse um íman para olhares emburrados, como se pensassem: "O que você está fazendo aqui?". Isso a fez bufar enquanto ajustava seu cachecol e começava a passar as mãos uma na outra para se esquentar.

— Meio difícil pensar por onde começar com um bando de cachorros olhando pra mim desse jeito. Eu juro que uma hora eu vou ser expulsa depois de socar a cara de um até ele desfalecer no chão todo ensanguentado. Cadê a hospitalidade? Entram em Hahle quando bem entendem pra virar lobisomens e sair por aí matando famílias, mendigos, a porra toda e não podem ver um humano nesse caralho que já ficam de cara feia. — Era bem o jeito de Amelie sair reclamando das coisas que percebia no momento em que algo começava a incomodar, poderia passar o dia inteiro falando sobre como era desconfortável ter olhos sobre si, literalmente o dia inteiro resmungando, mas precisava se controlar, afinal estavam ali para buscar respostas e não sair como três exilados de um reino que mal conheciam. — Que foi, porra?! Sua mãe não fez essa cara ontem! — Respondeu o olhar de um homem que passou bem próximo deles e ainda bateu no ombro de Amelie propositalmente quando continuou andando. O homem pareceu não se importar, como se pensasse que era coisa de humanos serem desbocados e incovenientes assim, mas a verdade era que eles eram os incovenientes agora. Sentia que podia explodir de raiva e sair xingando a cidade inteira a qualquer momento, mas ao mesmo tempo sentia que não tinha forças para isso. Talvez precisasse dormir, talvez fosse apenas uma fraqueza temporária.

— As construções aqui são bem estranhas, é difícil dizer o que pode ser uma estalagem, mas eu acho que uma estalagem não é o melhor lugar pra começar. Eu ouvi dizer que lycans gostam bastante de cerveja, talvez uma taverna. Talvez o mercado, se tiver um aqui perto. Sei lá, é a capital e tá cheia de gente, deve aparecer alguém uma hora. — Deu de ombros soprando nas mãos em seguida para tentar obter algum calor.

— Eu gostei daqui, as casas são engraçadas. A gente pode comprar um brinquedinho pra mim antes de voltarmos? — Tristan perguntou fazendo a melhor carinha de cachorro que caiu da mudança que conseguiu, o que tirou uma risada de Amelie, que logo em seguida a fez tossir. Talvez fosse apenas uma gripe que pegou no navio. "Ótima hora para ficar doente, Amelie", pensou consigo mesma.

— Vamos procurar um mercado, então. — Bagunçou o gorro de Tristan, já que não poderia bagunçar seus cabelinhos ruivos e ele fez uma careta. Ela sempre fazia isso quando brincava com ele ou com Keith.

Começou então a procurar com os olhos, enquanto fazia sinal para eles a seguirem. Poderia se sentir doente, mas continuava sendo a mesma mandona de sempre e sabia que Keith iria segui-la até o fim do mundo se ela pedisse, embora não quisesse que ele fosse assim. Isto o deixava muito vulnerável às suas próprias vontades, mas sabia que faria o mesmo com ele, era como se gravitassem ao redor um do outro e nada os separava. Começou a andar por aquelas ruas estranhas de madeira, o único problema era que por se sentir doente, não conseguia ser tão rápida quanto normalmente era e talvez Keith fosse perceber isto, mas precisava continuar em frente.

Enquanto caminhava, procurando algum tipo de mercado, não deixou de notar os olhares de desdém que lançavam para ela, como se cheirassem seu cheiro humano e sentissem nojo, o que a fazia ficar com cada vez mais raiva. Não era de humanos que eles se alimentavam quando entravam em Hahle? Bufou novamente, mas tentou deixar isso não afetá-la, precisava focar. Então como estavam na capital, não foi difícil encontrar tendas estranhas, com o topo de pele de algum tipo de animal e madeiras rústicas, bem diferentes das tendas de tecido de Hahle. Começou a olhar o que tinham para  a vender até que encontrou um pequeno grupo de crianças em frente a uma. Deu um sorriso para Tristan e foi o mais rápido que conseguiu até esta tenda, afastando as crianças como se fossem sacos de lixo. Parecia que o lado lycan não havia acordado ainda, porque não a olhavam da mesma forma que o vendedor a olhava. Observando a mesa com brinquedos cavados em madeira à disposição, encontrou um que tinha forma de lobo e outro com forma de lycan.

— Olha, Tristan! Parece o papai quando fica possuído pelo espírito da ratatanga. — Certo, tinha sido uma piada horrível, mas fez o menino rir ainda assim. Queria que ele escolhesse um dos dois, ou os dois se quisesse. Em sua opinião, o brinquedo em forma de lycan transformado era muito mais legal que o lobo gigante, mas o menino parecia animado com os dois.

Droga, sua tentativa de não demonstrar seus sintomas físicos foram por água abaixo. Deveria adivinhar, Keith era inteligente demais para não perceber. Fez uma careta quando ele colocou mais um cachecol nela, mas não era este o problema, não sentia febre ou qualquer sintoma de gripe. Era como se algo dentro de si estivesse apenas falhando, como se apodrecesse por dentro. Acabou comprando os dois brinquedos para Tristan e apenas observou enquanto Keith fazia suas coisas. Gostava de tê-lo por perto, de assisti-lo cozinhar ou cuidar do pequeno ruivinho que não desgrudava deles.

Mas apenas de ouvir a palavra "refeição", seu estômago revirava. Não sentia fome, não tinha apetite nenhum. Parecia que qualquer comida, por melhor que fosse, iria ter gosto de areia misturada com bosta de cavalo. Fez uma careta feia ao pensar em comer, talvez se dissesse que estava enjoada por conta da viagem não precisasse comer nada. O lycan que indicou onde ficava a estalagem mais próxima ficou meio desconfiado, mas sabia que era por causa dela e não por causa de Keith. Sequer olhavam para Keith ou Tristan, o menor parecia insignificante demais para eles para atrair qualquer atenção, mas Amelie... Seu sangue humano era extremamente perceptível ali, notou. Isto a incomodava.

— Ninguém olha pra você, é como se fizesse parte daqui, tipo, de verdade. Mas é incrível como parece que perderam algo na minha cara. — Bufou de raiva enquanto acompanhava os dois.

Assim que chegaram na estalagem, Amelie sequer tinha energia física para pegar suas moedas, então fez sinal com a cabeça para que Keith fizesse isso ao invés dela. Talvez, apenas talvez, pudesse fingir que estava com um resfriado porque era frio.

— Não podemos ficar muito tempo na estalagem, sabe... — Comentou, enquanto subia com os dois. A aparência do lugar era deveras interessante, bem diferente dos interiores de Hahle com que estava acostumada, então não conseguia parar de olhar ao redor, curiosa com a arquitetura. — Eu sei que a gente acabou de chegar, mas parar assim durante o dia é só perda de tempo. — Se sentia mais doente à medida que o tempo passava e queria resolver tudo aquilo antes que piorasse num ponto onde seu marido percebesse e pegasse a primeira viagem de volta para Elliot, então tentava mascarar aquilo com uma preocupação boba com o tempo que corria como água do mar.

— E eu não preciso disso, eu tô bem, minha saúde é de ferro, eu nunca fico doente. — Tirou o cachecol que Keith havia dado e o entregou, pegando a chave da porta da estalagem que estava nas mãos dele e abrindo-a.

Era um interior bem diferente também, tudo parecia ser feito à base de pele animal, até mesmo os lençóis de cama. A mobília era bem rústica, tinham entalhações de desenhos engraçados, muitas vezes de lobos, outras de deuses. Parecia que o povo do Norte era bem religioso. A ruiva ergueu as sobrancelhas e deu de ombros. Já que tinha que ficar ali pelos próximos dias ou seja lá quanto tempo fosse necessário, não iria reclamar, ao menos tinha um lugar quente para dormir e não teria que aguentar o frio do lado de fora.

— Tá friiio, acende a lareira papai. — Tristan pediu, abraçando a si mesmo tentando se esquentar.

— Se os lugares aqui são esquisitos assim, imagine em outros reinos... — Amelie comentou enquanto mexia numa simples decoração em cima da mesa de jantar, que era a figura de um guerreiro lycan. Aparentemente tudo ali era sobre lycans.

Não tinha como se surpreender, já que estava na terra deles, afinal. Esperava que ao menos encontrassem alguma resposta antes de sua situação piorar, pois já começava a temer que não fosse apenas uma virose de navio, mas algo bem pior.

Amelie queria apressar as coisas, queria que tudo ocorresse mais rápido para que ela pudesse tomar ervas ou qualquer outra coisa e se sentir melhor logo, não queria que sua súbita doença fosse um empecilho, também não passava por sua cabeça que era cirrose, que seu fígado estava falhando e consequentemente seus órgãos digestivos iriam começar a falhar também. Ainda achava que Elliot estava errado e não confiava nele.

Abraçou Keith quando ele pediu com aquela carinha que só ele sabia fazer, mas estava impaciente demais, queria explorar e descobrir mais sobre quem ele era e as coisas que ele poderia fazer. Era um mundo inteiro que não havia sido explorado. Então levantou-se num pulo.

— Podemos descansar a noite, agora vamos ao trabalho! — Apesar de sentir uma fadiga enorme, tentava não demonstrar.

Começou a seguir Keith pela rua enquanto observava os olhares que eram direcionados a ela, devolvia um olhar intimidador de volta, mas parecia que não funcionava muito em lycans. Ela era apenas uma simples humana pirata, poderiam temê-la em suas terras, mas não ali. Isto a frustrou tanto que cruzou os braços impaciente e apenas piorou quando o homem que Keith ajudou falou sobre a terra dos humanos e coisas do tipo. A ruiva girou os olhos e ia falar alguma coisa, mas o homem logo se retirou.

— Esse filho da... — Logo outro homem surgiu, notou alguns traços similares aos traços de Keith, porém poderia ser apenas sua imaginação. Não eram tão semelhantes quanto ela e sua progenitora. — Eu não dou uma foda pra quem você é, que porra você quer? — Sentia que havia mais do que "apenas ajudar" ali, tinha esta sensação estranha, então não foi difícil mostrar sua hostilidade.

Observava toda aquela conversa de braços cruzados, sem tirar o olhar daquele homem que aparentemente queria ajudá-los. Tentava enxergar através do que ele mostrava, em sua mente sempre tinha alguma coisa que as pessoas não queriam dizer, sempre havia uma mentira escondida, mesmo se fosse inofensiva. Aprendeu a nunca confiar em ninguém no decorrer de sua vida, que desconfiava já estar no fim. A vida foi muito cruel com ela desde que estava no ventre de sua mãe, estava acostumada a receber "ajuda" em troca de alguma coisa, sempre havia algo por trás, então deduziu automaticamente que havia algo ali também.

— E o que você quer em troca? Ou vai dizer que tá fazendo isso por bondade? "Porque quer ajudar"? — Apesar do olhar de Keith, a voz de Amelie continuava ríspida, seu olhar hostil, suas ações imprevisíveis.

Mas Amelie se sentia vulnerável e desprotegida ali, parecia que ninguém tinha medo de piratas e muito menos de uma pirata humana. Precisava demonstrar algum tipo de hostilidade, como se dissesse "eu sou perigosa mesmo não sendo como vocês". Às vezes, como aquela, Amelie odiava ser humana. Suspirou impaciente e se aproximou de Sean o suficiente para sentir a respiração branca dele em seu rosto.

— Eu vou te dizer uma coisa, lycan... — Usou aquela voz que sempre usava quando o ódio a dominava ou estava tentando intimidar alguém. — De onde eu venho, não se confia em ninguém. EU não confio em ninguém, muito menos em você agora. Um passo em falso, uma armadilha, eu pego minhas duas espadas aqui que sei muito bem como usar e arranco seu coração fora. — Se afastou, pois não queria ficar perto de um desconhecido por muito tempo, mas logo sentiu seu estômago se irritar, não sabia bem o porquê, não fazia sentido, ela não havia comido nada, literalmente nada. Uma parte de seu abdomen doía tanto que a fez tossir novamente, não era uma forma muito boa de intimidar alguém, mostrando fraqueza logo depois.

— Ele foi a única pessoa que moveu um dedo pra ajudar quando a porra da cidade inteira ficou olhando pra mim como se eu fosse uma aberração, então acho que não temos escolha. Tá com a pistola aí? Qualquer coisa a gente atira no pau dele e sai correndo. — Esboçou um sorriso amargo, que não era bem um sorriso, mas uma ameaça, para o lycan, em seguida.

Amelie seguia o lycan desconfiada, passando os olhos ao redor, retribuindo todos os olhares que eram direcionados à ela. Aquilo a deixava impaciente, não conseguia lidar com tanta gente a olhando de nariz empinado como se fossem melhores que ela.

— Meio difícil não sair batendo nesses merdas quando me olham como se eu fosse merda. — Comentou baixo para Keith, mas a verdade era que não se importava se Sean iria ouvir ou não.

Prestava atenção a conversa ainda assim, conseguia focar em sua raiva e no que diziam ao mesmo tempo. Se perguntava por quanto tempo Keith iria fingir não ser impuro, por quanto tempo iria esconder este fato. Mas ao ouvir eles falando sobre cio, Amelie explodiu em risada, mesmo se sentindo fraca, ria tanto que até perdeu o fôlego, porém perdeu o fôlego mais rápido do que costumava. Sentiu uma pontada no abdomen novamente e tentou respirar fundo antes de proferir algo sobre aquilo.

— Eu lembro desse dia. Quando acontece de novo? — Perguntou travessa, batendo levemente no ombro de Keith com seu próprio ombro. Sabia que ele iria ficar constrangido e gostava de provocá-lo. — É, se ele saísse fodendo todas as humanas de Hahle, eu cortaria o pau dele fora com uma faca cega. — O simples pensamento já a aborrecia. Pensar em Keith descontrolado transando com qualquer mulher que aparecesse em sua frente fazia um ódio enorme subir por sua espinha, se isto acontecesse sentia que iria surtar e sair matando a cidade inteira.

Ao chegarem à casa de Sean, era como todas as outras casas por ali. Franziu o cenho, achando aquilo estranho. Era um lugar estranho, mas talvez só fosse porque era outro reino e não havia ido muito longe de Hahle, além das zonas neutras onde vendiam e compravam mercadoria roubada. Ainda não confiava no lycan, não sabia o que poderia encontrar ali, mesmo sendo tão hospitaleiro não conseguia acreditar em bondade sem recompensa, não era assim que as coisas funcionavam em sua terra.

— Acho que deveria contar a verdade pra ele, talvez fique mais fácil. — Murmurou no ouvido de Keith, erguendo as sobrancelhas para ele sem seguida. Estava pronta para atacar caso as coisas ficassem feias por ali, não se sentia segura naquele reino.

Amelie colocou os pés sobre a mesa de centro que era de madeira, colocando um pé por cima do outro, os balançando e cruzou os braços enquanto apenas ouvia a conversa dos dois. Não gostava dessa conversa de cio e sair fodendo com todas as pessoas que aparecem na sua frente inconscientemente, que era o que parecia pela forma que Sean se referia ao assunto. Isso a deixou aborrecida e pensando em mil possibilidades. E se fosse diferente da próxima vez? Todos ali sabiam que Keith parecia ser mais lycan que humano, em quase todos os sentidos. E se fosse algo de apenas uma vez e na próxima ele não se atraísse mais por ela, mas por outras mulheres? E se do nada ele simplesmente se descontrolasse e fizesse o que Sean falava que faziam? Tudo isso se passava em sua cabeça de novo e de novo até que decidiu perguntar.

— Tem chance disso mudar? Tipo, esse cio aí... Ele pode não me achar atraente da próxima vez e sair fodendo outras pessoas? — Era até vergonhoso fazer aquela pergunta porque Amelie não queria demonstrar fraqueza emocional, que tinha inseguranças ou ciúmes, mas sua voz e preocupação mostrou muito bem como ela se sentia em relação à isso.

Também lhe preocupava aquelas formas diferentes de se transformar. E se desse errado? E se seu corpo não fosse feito pra aquilo?

— Certo, todo mundo sabe que ele é muito mais lycan que humano, mas isso não traz garantia nenhuma... E se algo der errado?! — Questionou franzindo o cenho. — Tem certeza que a pior coisa pode ser ele não conseguir alcançar a meia transformação? Se alguma coisa acontecer com ele, eu caço você até o fim do mundo. — Também não era incomum para Amelie ameaçar pessoas, mas aquela ameaça saiu mais séria que o normal, porque era uma ameaça mais séria que o normal. Tinha medo que algo desse errado terrivelmente e acontecesse alguma coisa muito ruim e irreversível com Keith. Quem sabe o que poderia acontecer? Era a primeira vez que iriam tentar algo assim.

Ouviu a resposta dos dois, mas ainda se sentia insegura em relação a tudo aquilo de copulação e sei lá o que. Mesmo sendo muito segura de si, de suas habilidades e tudo mais, no fundo Amelie nutria uma insegurança que não demonstrava, principalmente sobre seu corpo e todas as marcas que carregava, todas as cicatrizes de todas as batalhas e injustiças que sofreu. Sabia que possuía um rosto bonito e diferente, que chamava atenção, mas não achava que seu corpo era atrativo de forma alguma. Abaixou o olhar enquanto isto passava por sua mente, era difícil admitir essas coisas ou não enterrá-las bem fundo dentro de si para que ninguém pudesse ver.

Nem a resposta de Keith foi suficiente para que isso saísse de sua cabeça. Suspirou, deixando os braços relaxarem um pouco mais, os desfazendo e começando a mexer as mãos, uma na outra, ainda ouvindo as palavras do lycan. Percebeu que suas mãos estavam tremendo sem nenhuma razão aparente e sua fraqueza a fez sentir uma leve tontura que logo passou. Logou notou que olhavam para ela, como se Keith precisasse de sua opinião ou que ela fosse sua guia.

— Eu tava perdida aqui pensando em outra coisa... — Nunca pedia desculpas a desconhecidos e raramente pedia desculpas sinceras às pessoas que tinha alguma consideração, então esta era aquela forma que encontrou de se desculpar pela demora a responder.

Suspirou novamente e mexeu as mãos, os dedos enrolados uns nos outros, abrindo a mão ainda assim, com as palmas juntas e deu de ombros.

— Você sabe o que vai acontecer com você se algo acontecer com ele. — Ergueu as sobrancelhas para o lycan. — E viemos aqui por um propósito, então não faz sentido não tentar. Ele é um homem certinho  e controlado demais até quando se transforma, então não vai sair por aí matando pessoas aleatoriamente. Mas algo acontece com ele e eu te mato não aleatoriamente. — Esboçou um sorriso forçado e hostil para Sean, voltando a olhar suas mãos novamente em seguida.

Arregalou os olhos quando percebeu que Keith teria que se despir na frente de Sean. Era verdade, ou ele faria isso ou ficava andando na rua sem roupas, o que não era o ideal. Tristan estava distraído demais com seus novos brinquedos para se importar com a conversa ou que acontecia, ele tinha apenas seis anos afinal.

Quando sentiu a cabeça de Keith em seu colo e viu ele tentando focar, observou seu rosto por longos momentos. Amava o formato gentil dos olhos dele, o rostinho de bebê, as bochechas que sempre ficavam coradas, os cabelos loiros bagunçados, as pintinhas que ele tinha pelo corpo... Precisava se controlar para não acabar fazendo coisas indevidas do nada em um momento tão sério, mas não era culpa sua, a pessoa que mais amava no mundo estava sem roupa bem ali.

Depois de um tempo, percebeu que não estava fazendo efeito, parecia que ele estava perdido tentando encontrar aquela "fera interior" que Sean sempre falava, então decidiu ajudar, precisava ajudar de alguma forma. Aproximou o rosto um pouco do rosto dele, passando os dedos por seus cabelos que tanto amava.

— Eu vi sua fera interior aquele dia, quando você me encontrou na masmorra completamente machucada, apenas ossos e pele, sem conseguir andar, sendo feita de brinquedo por aqueles homens nojentos por dias e noites inteiras... Eu lembro como você ficou, lembro que tive medo que fizesse algo contra mim, aquela é sua fera interior, amor... Ela está aí e não precisamos passar por algo assim novamente pra ela surgir de novo. Talvez se lembrar do que estavam fazendo comigo quando me encontrou... — Sabia que lembrar daquilo doía nos dois, mais nela do que nele, pois ela tinha sido a vítima daquele evento extremamente traumático que demorou meses para se "curar", mas precisava tentar de alguma forma.

— Você pensa demais, amor. Deixa a mente trabalhar... Não vai acontecer nada de ruim, eu tô bem aqui. — Continuou fazendo carinho em seu cabelo, com o rosto próximo do seu, mas não conseguiu se segurar e lhe deu um abraço, enfiando o rosto em seus cabelos. — Tá tudo bem, eu tô aqui. — Tentou acalmá-lo falando aquilo em seu ouvido, mas logo teve que se afastar, pois ele precisava se concentrar na transformação. Entretanto, não parou de acariciar seus cabelos.

Sentiu Keith cair de seus braços e observou aquele processo que tanto odiava, que trazia tanto sofrimento. Parecia que nunca iria doer menos, sempre machucava da mesma forma. Franziu o cenho enquanto observa ele se contorcendo no chão e sentindo aquela dor excruciante que conhecia há tempos. Sentia a dor que ele sentia, mesmo não sentindo fisicamente, vê-lo gemendo em agonia fazia seu peito apertar. Odiava aquela sensação e o que fazia com ele, pelo que Sean havia dito, era mais doloroso em impuros que em lycans puros, o que não tornava nada daquilo mais agradável. Tristan já estava em um quarto de hóspedes tentando ignorar o barulho na sala de estar enquanto sua figura paterna gritava e grunhia de dor. Ver tudo aquilo era excruciante para Amelie, mas se Keith era forte o bastante para passar por algo assim, ela também teria que ser.

Foi até ele assim que o mesmo caiu no chão, nunca o deixava sozinho, não se importava se ele se lembrava daquilo ou não, mas não conseguia vê-lo sentindo dor e simplesmente assistir, então continuou acariciando seus cabelos dourados e falando palavras gentis, mesmo sabendo que ele não as ouviria. Estava acostumada o suficiente para perceber quando a transformação finalizava, mas não conseguia evitar de sentir medo, ele se tornava um lycan enorme comparado a sua altura e sempre agia de maneira animalesca. Se afastou um pouco, deslizando pelo chão ao perceber que a transformação, que parecia ter durado séculos, havia acabado e tentou recuperar seu fôlego, ainda tremendo de medo. Era o único momento em que sentia medo de Keith, quando ele se tornava aquela fera, em sua forma humana podia facilmente enchê-lo de porrada sem nenhum problema, mas ali, em terras estranhas, com um lycan e um quase lycan transformado, se sentia extremamente vulnerável, então tentou falar alguma coisa.

— Amor... Sou eu... — Sua voz saía trêmula, era apenas uma humana, afinal. Mas ele estava perto demais porque ela havia ficado perto demais, então sua tentativa de deslizar até o sofá não tinha sido muito efetiva. — Se guia pela minha voz... E pelo Sean... Tá tudo bem, o Tristan tá seguro, eu tô aqui. — Tentou falar, tentando esconder seu medo, mas parecia impossível. Amelie parecia não ter medo de nada, mas tinha medo do próprio companheiro quando ele se transformava em lobisomem. Era realmente uma coisa aterrorizante de se ver.

Ao ouvir a frase de Sean, ela fez uma careta de raiva, o fitando.

— Você quer que eu simplesmente coma ou toma um chá com você enquanto meu marido tá assim? — Só de pensar nisto já perdia o controle de sua voz, se Keith tinha que passar por algo difícil como aquilo, ela passaria também. — Cê tá tirando com minha cara, cachorro. Até ele voltar ao normal eu não saio daqui, come sozinho. — Não conseguia manter sua pose de durona ou seus braços cruzados, mas sua voz falava por si só.

Por algum motivo, Amelie não conseguia comer, sentia uma náusea indescritível, não sabia dizer o motivo, temia ser o mesmo motivo da última vez, de estar grávida. Mas no fundo sabia que não era isto, os sintomas que sentia eram muitos diferentes do que sentia da última vez. Era como se seus órgãos estivessem desistindo de funcionar e não como estivessem carregando outra coisa dentro de si. Talvez Elliot estivesse certo sobre ela não ser fértil o suficiente para carregar uma prole, o que a fazia se sentir menos pior do que geralmente se sentia, mas não fazia se sentir menos preocupada sobre sua condição. Sabia que o marido estava preocupado sobre isto, mas no fundo sabia que era algo muito pior do que uma criança que carregava em seu ventre novamente. Seus sintomas eram diferentes desta vez, não era como se sentisse nauseada porque tinha algo em seu útero, embora notasse que seu ciclo estava estranho e indiferente às outras vezes.

Quando Sean ofereceu comida, Tristan saiu de seus aposentos correndo para comer, mas não ela. Não sentia qualquer tipo de apetite, não tinha vontade de comer, como se qualquer comida fosse fazê-la vomitar. Apenas negou com a cabeça quando foi oferecida e ficou do lado de Keith até que este acordasse de seu transe lycan. Ele precisava aprender de qualquer forma, mas sentia como se sua vida humana estivesse chegando a um fim que não sabia descrever, apenas sentia. Como aqueles dois iriam ficar sem ela? Como iriam sobreviver num navio pirata sem Amelie ao lado deles? Sabia que era culpa dela, não havia outra pessoa a culpar a não ser si mesma. Suspirou enquanto observava Keith voltar ao normal.

— Você disse que daria uma calça a ele caso a dele cedesse, bom, essa é hora. — Disse a Sean enquanto ele comia, com uma voz séria. Não pensava em comer, não queria comer, não queria comer. A simples ideia de comer lhe trazia náusea. Ergueu as sobrancelhas até que o lycan lhe trouxesse uma calça ao menos, e quando o fez, esperou Keith voltar ao seu estado humano e o vestiu, cuidadosamente. Mas de repente, assim que o terminou de vesti-lo, outra figura surgiu. Muito semelhante ao próprio marido.

Não conseguiu se conter, não se importava se estava em outras terras ou se iriam caçá-la depois dali, estava acostumada a ter sua cabeça por um preço. Ter sua cabeça por um preço por outras terras não a intimidava de forma alguma. Levantou-se assim que terminou de vesti-lo e foi até a figura, desferindo um soco tão forte que ele deu dois passos para trás. Poderia estar fraca, mas para uma humana, era forte demais quando se via dominada pelo ódio.

— Quem caralhos é você, porra?! — Só de pensar que poderia ser o progenitor do homem que amava já lhe trazia um ódio que não conseguia descrever. — Acho melhor responder antes que eu te mate aqui, agora. Você não sabe quem eu sou, não sabe do que eu sou capaz, eu posso ser a porra de uma humana nessa porra de terra fria e estranha, mas eu sou a porra de um monstro. — Se a viam como um monstro em suas próprias terras, quem mais Amelie poderia ser?

Logo sentiu um soco ser desferido contra seu rosto, mais especificamente em seu maxilar, por aquele homem. Era forte demais para ela encará-lo sozinha, mas não iria desistir. Tristan observava tudo de olhos arregalados. Já estava acostumado com o temperamento da ruiva de qualquer maneira, mas ali era diferente, não tinham medo de sua reputação ou de seus feitos. Amelie se viu no chão, com o maxilar quase deslocado, mas isto não parou seu ódio.

— Eu posso ser humana ou o caralho a quatro que você quiser que eu seja, mas eu sou a porra de um monstro. Ou você me responde, ou a gente entra na porra de uma briga até você me matar. — Ajustou a mandíbula enquanto se levantava, lançando o olhar mais odioso que já mostrou em toda a sua vida. Não se importava com sua própria vida, apenas com a vida de Keith e Tristan e se aquele homem era quem imaginava, estava disposta a morrer para acabar com quem quer que ele fosse.

Ajustou a mandíbula, aquilo provavelmente iria se transformar em um hematoma muito feio e doía como o inferno, além da dor que sentia no abdomen e os sintomas que estava sentindo dias antes naquele navio. Entretanto, sua expressão de ódio não mudou, fuzilava aquele homem com os olhos como se pudesse matá-lo a qualquer momento, faria isso se pudesse, se Sean não estivesse tentando acalmar os ânimos, até mesmo Keith havia se colocado em sua frente e segurado seu ombro, talvez com medo que ela fizesse mais alguma coisa.

Aquela ladainha sobre alfas e não sei o que não a intimidava, o porte físico daquele homem não a intimidava de maneira alguma, já havia matado centenas de homens assim sem nenhuma dificuldade. Talvez estar na casa dele exigisse algum respeito, também ficou rancorosa com o filho do Keenan depois que ele invadiu sua casa e teve que bater nele para exigir respostas, mas naquele momento respeito era a última coisa que se passava em sua cabeça.

— Eu tô pouco me fodendo pra quem ele é ou a porra do que ele significa aqui. — Respondeu a Sean, ainda massageando a mandíbula que havia sido socada.

Seu olhar, entretanto, não saía de Rowan, analisava a forma que o homem se comportava, seu porte físico, olhava em seus olhos de maneira tão profunda que sentia que conseguiria ver sua "alma" se pudesse.

— Você é essa bosta aí, mas tem um rei aqui, não tem? Acho que ele quem dá as ordens no final. — Tirou a mão da mandíbula e cruzou os braços, dando dois passos à frente, sentindo a mão de Keith sair de seu ombro pela distância. Ficou bem mais perto de Rowan, não tinha medo dele, embora seus instintos dissessem que deveria ter medo. — Me diz uma coisa, lycan, você gosta de lixo? Só uma pergunta mesmo, cê gosta de lixo? — Poderia ser uma pergunta cômica se não fossem as circunstâncias e se a voz de Amelie não estivesse tão carregada de raiva.

Virou-se para trás, para Keith, em seguida, o fitando nos olhos, mas seu olhar não mudou, não conseguia mudar, estava dominada pelo ódio e talvez pela fraqueza que sentia ou pela preocupação de causar problemas e acabar colocando ele e Tristan em perigo, tentava controlar a vontade de avançar naquele homem e sair na porrada com ele, mesmo que fosse morrer no final, o que provavelmente iria acontecer, já que ele era um lycan e ainda por cima muito forte.

— Vista-se, eu preciso ter uma conversinha com esse arrombado aqui e você acabou de voltar à si. — Disse para Keith, numa voz mais gentil do que a que usou com aquele lycan. — Não se preocupe, eu não vou morrer só pra tirar sangue desse verme, suas roupas estão ali. — Apontou para onde havia as deixado, devidamente dobradas, aquele lugar era frio e ele precisava se proteger, além de que sentia que a conversa iria ficar muito tensa nos próximos minutos.

Seus olhos cianos não saíam dos olhos de Rowan, mantinha a mesma expressão, o mesmo olhar homicida, como se fosse arrancar sua pele aos poucos com as próprias unhas. O alfa parecia não ceder, ela também não cederia. A tensão era quase palpável no ar, estava nítido que ela queria matá-lo e ele estava com muita raiva. Mas Amelie nunca teve medo da morte.

Então Keith decidiu intervir e começar a explicar a situação, mas os olhos da ruiva continuavam fuzilando aquele homem. A forma que ele se referiu a impuros só a fez ter mais raiva ainda. Você sai fodendo humanas por aí, sabendo muito bem que pode trazer uma criança que só vai sofrer ao mundo e faz mesmo assim. Seu ódio por aquele homem só crescia. Quando o ouviu falar de Hahle então, Amelie sentiu um ódio subir por sua espinha.

— Hahle é assim por causa de vocês! Vampiros, lobisomens, elfos, bruxos... Vocês tiraram qualquer chance de ter um lar estável, vocês roubaram nossas terras e ainda tem os culhões de falar mal da porra do reino que VOCÊS destruíram! — Estava extremamente impaciente, mas às vezes esquecia até de piscar de tão fuzilante que seu olhar estava.

Não queria sair, queria exigir respostas, queria bater naquele homem, queria sacar suas espadas e esfolá-lo vivo, mas sentiu Keith a puxando, até as roupas ele esqueceu. Logo foram interrompidos e o alfa começou a contar uma história de anos atrás em Terus. Fazia sentido, era parecido com o que havia acontecido com a mãe de Amelie. As mulheres eram sempre as maiores vítimas, o que fazia com que um ódio pelo sexo oposto apenas se expandisse. Aquele merda havia abandonado uma mulher grávida de seu filho, mesmo sem saber se era dele ou não, poderia ao menos prestar algum tipo de ajuda. Pela forma que a casa era bem estruturada, imaginava que por ser alfa, ele possuía bastante Kham.

Então Sean completou a frase de Rowan e Amelie, ainda segurando o olhar nos olhos do lycan mais forte, resolveu falar.

— Eu não entendo porra nenhuma, mas talvez seja por isso que ele se transformou desde a adolescência, talvez por isso ele consiga se controlar quando está em sua forma lycan, sente ciúmes de mim aleatoriamente e não consegue entender depois, é mais forte que um humano e recentemente teve aquela coisa bem boa, qual o nome mesmo, que ele me fodeu a noite inteira até a cama quebrar... — Colocou a mão no queixo, pensativa.

Então tentou chamar a atenção de Keith novamente.

— Amor, a roupa... Veste a roupa, esse lugar é tão frio que se eu tivesse bolas elas estariam congeladas.