Tudo era muito estranho para Amelie, principalmente o corset que colocaram por baixo de seu vestido vitoriano e as camadas de roupa que precisava vestir para se adequar ao ambiente, embora fosse maravilhoso ver Keith usando aquelas roupas chiques que eles nunca poderiam usar em Terus.

Como sempre, nevava muito, embora fosse apenas primavera e não conseguiu deixar de abrir o guarda-chuva para protegê-los do frio, já que Tristan e Keith eram mais humanos que ela e precisavam mais do que ela. Se sentia estranha usando aquelas roupas quando estava tão acostumada às calças e sobretudos, agora usava um vestido vermelho escuro com detalhes dourados, o cabelo trançado em um penteado deslumbrante, embora não precisasse mais respirar, seu peito subia e descia, ansiosa.

Ao longe, vendo que Tristan estava no colo de Keith e Ivan apenas os seguia ao longe, como sempre fazia, se animou ao ver uma criança. Uma menina de cabelos loiros cacheados, foi até ela o mais rápido que conseguiu, parecia ter 7 anos, mas seus olhos vermelhos e a complexão cadavérica não mentia sua identidade.

— Olha! Uma criança!  

Mas as palavras de Amelie foram por água abaixo quando a menina virou-se para ela com cara de poucos amigos e disse um ríspido: "Eu tenho 28 anos". A ruiva deu dois passos para trás, engolindo em seco, era mesmo um lugar totalmente diferente de Hahle.

— Ela tem 28 anos!  

Murmurou para Keith, levando o olhar novamente para a mulher enquanto sua garganta parecia seca e desidratada.

Pensou que talvez Keith não houvesse percebido bem o local onde ele estava, então achou engraçado ele sussurrando em seu ouvido como se todas as criaturas ao seu redor não possuíssem super audição.

— Ivan disse uma vez que não crescem, são vampiros congelados na mesma idade, assim como eu.  

Era estranho pensar que Amelie era uma vampira, no fim das contas. Era isto, ela estava congelada daquela forma para toda a eternidade, nada nunca iria mudar, apenas unhas e cabelos, que podia cortar e iriam crescer novamente.

— Eu não sei, é muito estranho usar essas roupas e não me alimentar, não precisar dormir... Eu só fico observando você dormindo, isso quando o Ivan não me chama pra fazer alguma coisa...  

Era estranho também ter aquela sensação de que algo estava errado e fora do lugar quando pensava em Ivan, nem sabia o motivo de estar o mencionando tantas vezes, mas não conseguia evitar, ele estava em sua vida agora. Sentia que talvez a "admiração" que ele sentia por ela pudesse estar se tornando outra coisa e seu amor paterno se transformando em algo bem mais sério e mais além disto, mas se contasse a Keith, poderia dar adeus a Vollbrecht, porque preferia ser inexperiente em um lugar mais quente e perigoso do que vê-lo desconfortável.

— Ivan me veste como se eu fosse uma boneca de porcelana, eu não sei bem o que fazer, acho que tô presa à ele pra sempre, já que ele me criou, então tô tentando fazer as coisas de maneira que não desgrace todas as minhas chances de aprender alguma coisa, mesmo estando bastante desconfortável. Acho que vamos ter que ficar aqui por mais um tempo...  

Suspirou o ar gelado como se seus pulmões ainda precisassem dele e tentou esboçar um sorriso, mas este saiu murcho como uma folha velha de outono, seu desconforto era visível, mesmo que ela tentasse esconder.

Amelie deu de ombros e abaixou a cabeça, pensativa sobre o que Keith havia dito. Ele havia percebido o que ela estava tentando esconder há muito tempo, não importa o que fizesse, ele iria perceber de um jeito ou de outro. Passou a bota vitoriana no solo coberto de neve, olhando para o marido de cima para baixo, tentando manter a calma e não entregar nada.

— Você percebeu, então... É, ele me olha de um jeito estranho. No começo era como uma filha pra ele, que ele cuidava e mantinha viva, depois começou a ficar estranho... Como se a cada vez que ele me olhasse, algo palpitasse em seu coração morto. Eu não sei o que pensar, eu tô morta também... Nós nunca vamos ter um filho nosso, ou envelhecer juntos, ou fazer coisas que casais "humanos" fazem. Até a luz do sol queima minha pele agora, como eu vou ser uma pirata assim? 

Antes que pudesse terminar, uma comoção teve início perto de onde estavam, o que a fez mudar seu foco de atenção o mais rápido que conseguiu, em milésimos de segundos. Uma carruagem branca e dourada, com pelugens brancas e cavalos brancos e peludos, com armaduras de ouro, começaram a se aproximar. Todos reverenciavam aquela carruagem e Amelie não conseguiu fazer o mesmo, era a primeira vez que via algo tão nobre sem ter a intenção de roubar. De longe, conseguiu ver quem estava dentro, um homem extremamente pálido como a neve que os cercava e olhos escarlate que cintilava, os cabelos longos e brancos refletiam a luz e ele parecia apenas observar as coisas ao seu redor.

— Todos reverenciem, Rei Aleksandr Leistkows!  


Um dos guardas reais exclamou enquanto passava junto com a carruagem. Amelie franziu o cenho, segurou firme a mão de Keith, que era quente demais em comparação à sua mão fria como um cadáver.

— Eu quero voltar pra Hahle... Tudo aqui é estranho demais, eu quero voltar pra casa, pra o navio, pra vida que eu tinha antes, dói demais ter que aceitar que agora eu sou algo totalmente diferente e nunca vou poder voltar à única vida que eu conheci... E agora tenho que reverenciar a realeza.  

Girou os olhos de cenho franzido e voltou a olhar para a carruagem que passava, sem olhar para dentro. Logo ela passou por eles e Amelie não reverenciou nada, não se importava.

— Eu vou estar presa à ele pra o resto da eternidade, é o que eu sou agora... Não tem como fugir. Mas ainda bem que você notou, eu tinha receio em lhe contar, mas agora não faz muita diferença.  Eu estou presa à ele e ele está preso à mim, não tem como mudar isso. 

E era verdade, estava presa àquele homem para sempre e não havia nada que pudesse mudar isso. Se tentasse fugir, ele iria encontrá-la. Isto era frustrante, não iria conseguir fugir daquele homem porque ele havia a 'criado' como o que ela era agora e o sentimento que ele estava nutrindo por ela, não iria mudar, mas ela precisava fugir dele o mais rápido que conseguisse, assim que pudesse.

Amelie parecia extremamente frustrada com sua nova vida, se é que poderia chamar aquilo de vida. Ela estava morta, gelada como um cadáver, longe de sua terra natal, tendo que viver entre criaturas que sempre odiou, tudo isto para continuar existindo, mas parecia um preço caro a se pagar. Não conseguia evitar demonstrar o desgosto que sentia por tudo o que a rodeava, especialmente as roupas que era obrigada a vestir por um vampiro que a vestia como uma boneca, sem se importar se ela se sentia confortável com aquilo. Agora tinha que prestar reverência a um Rei, sequer respeitava o rei de Hahle, não entendia o motivo de ter que respeitar um Rei que sequer era seu... Bem, talvez agora ele fosse.

Permaneceu com o olhar fixo na carruagem sem prestar reverência, talvez conseguisse escapar com a desculpa de ser nova por ali, estava pouco se fodendo para o Rei de Vollbrecht.

— Eu não estou presa? Eu acho que presa é o que eu mais estou agora. Estou condenada à essa vida pra sempre, eu nunca vou deixar de ser essa aberração até eu morrer. 

Conseguia sentir as lágrimas de sangue se formando em seus olhos, nem mesmo isto era natural ou como se lembrava.

— O que vai acontecer quando você envelhecer e morrer, Keith? Eu vou ter que viver sozinha? Tá, eu sei que tudo isso foi minha culpa, eu causei minha própria morte sendo teimosa e inconsequente, era a única vida que eu conhecia... Mas puta que pariu...   

Passou as mãos pelo rosto como se limpasse algo sujo, agora sua pele era tão pálida que remetia à neve que caía no chão e os cabelos vermelhos combinavam perfeitamente com os olhos da mesma cor.

— Aquela criança era mais velha que nós dois juntos! Tudo aqui é bizarro e eu estou pouco me fodendo se todos conseguem me ouvir! Não é natural e agora eu não sou natural também... E honestamente, tudo o que eu quero é cravar meus dentes no seu pescoço e sugar seu sangue até não restar nada... Isso é natural? Eu sou o monstro que todos disseram que eu era... 

Amelie desviou o olhar para o horizonte branco e pálido de neve, passando a mão nos olhos em seguida para esconder as lágrimas de sangue que teimavam em tentar descer por seus olhos agora escarlate.

Se sentia completamente culpada pelo que estava acontecendo com ambos e com o filho deles também. Amelie não era mais humana, não era mais apenas uma pirata que precisava se preocupar com sereias, agora era uma vampira que precisava se preocupar com o sol e a falta de sangue, sua existência havia se resumido à isto. Ouvir as palavras de Keith não ajudaram completamente em seu estado, havia dissociado durante muito tempo enquanto estava no início de sua transformação, onde tudo parecia um borrão e a realidade apenas um sonho. Agora tudo parecia real, sua realidade era Vollbrecht e Aleksandr Leistkows. Ela, que sempre havia sido contra a lei e as normas, agora teria que seguir leis e normas para continuar ali. Tudo ali era estranho, por mais que Keith dissesse que aqueles vampiros conseguiam lidar com a estranheza. Alguns deles, inclusive, passavam por eles e ao sentir o cheiro de Keith faziam uma careta que fazia Amelie queimar de raiva, mesmo andando sobre a neve. Amelie queria xingar todos eles, mas entendia a repulsa pelo cheiro de Keith, era como um cachorro molhado que apenas o amor que sentia por ele fazia ela lidar tranquilamente com o odor.

Ela parou subitamente e abaixou a cabeça, fitando o chão branco coberto de neve, o vento frio como o inverno mortal do apocalipse balançava seus cabelos ruivos e o vestido que usava e odiava.

— Amor... 

Sua voz engasgou por alguns segundos antes de continuar.

— Esses vampiros são muito mais velhos do que nós dois, esta é a realidade deles, durante muito tempo, a realidade que eu conheço é onde eles são os predadores tentando sugar nosso sangue até a morte... E agora eu sou como eles, eu não consigo expressar em palavras o quanto isso é doloroso.   

As manchas de sangue ainda sujavam o rosto de Amelie mesmo ela tentando limpar com as mãos.

— Eu sequer tô viva, Keith.... Eu me tornei algo bizarro muito diferente do que eu era antes, sequer sou quente como um humano normal... Mas se isso trouxer vantagens em batalha, batalhas noturnas, eu não serei apenas uma humana com grandes habilidades, eu serei uma vampira com grandes habilidades e eu poderei te proteger também, assim como você me protegeu e me protege até hoje. É isso que o amor é, no fim das contas... Eu não consigo viver sem você  e você não consegue viver sem mim, então não vamos viver sem o outro, mesmo que isso  custe nosso tempo e nossa própria existência, eu morreria por você. 

Ao falar isto, Amelie não pensou duas vezes antes de selar os lábios contra os lábios quentes de Keith, mesmo que isto lhe trouxesse um desejo inexplicável de sugar seu sangue e matá-lo ali mesmo. Foi tão natural quanto era antes, as línguas, o abraço, o amor. Mas quando estava completamente distraída, um vampiro de cabelos brancos e olhos vermelhos como rubi parou ao lado dos dois, fazendo Amelie se afastar de Keith e fitá-lo como se quisesse matá-lo.

— Eu sinto um cheiro estranho... Porém saboroso. São seus? 

O vampiro perguntou, porém como Keith possuía mais sangue lycan que humano, seu cheiro era deveras repulsivo para a raça completamente oposta que agora sua esposa fazia parte. Amelie conseguia suportar o cheiro, não se importava tanto, na verdade, embora fosse difícil lidar com o cheiro do sangue de Tristan. Ela apenas meneou a cabeça.

— São meus... Escravos. Ambos, a criança é humana e o homem é metade lycan. Acredite, o sangue lycan, por mais que repulsivo, é muito saboroso. 

Ela sabia que o sangue lycan podia ser venenoso para vampiros e falou aquilo de propósito, com um sorriso no rosto de quem está tramando algo malévolo. O vampiro loiro sorriu para ela, respeitando seus "escravos" e meneou a cabeça, se despedindo. Amelie apenas sorriu falsamente para ele, o assistindo ir embora.

— Pelo que Ivan me disse, todos aqui conseguem ouvir o que falamos. Mas esse parece bem idiota, consumir sangue lycan... Honestamente eu não consigo suportar esse lugar, quero voltar para Hahle, mas sei que preciso aprender mais sobre essa bosta de coisa que eu sou agora.