A maneira que Amelie parava para observar as coisas sem falar nada poderia parecer um pouco assustador, nenhuma palavra saía por sua garganta, apenas os olhos agora escarlate, observava tudo atentamente. As preocupações que Keith tinha em relação a Tristan, Amelie tinha também, mas estava tão silenciosa que dificilmente parava para falar alguma coisa.

— Não há muito o que fazer, ela se soltará mais quando se sentir mais livre para se expressar de maneira correta e segura. Por enquanto, o ideal seria continuar em silêncio. — As palavras de Ivan eram claras, embora Amelie não concordasse com a afirmação, não tinha ideia de como rebater e sobrepor o que o vampiro afirmou.

Então ela se manteve em silêncio, talvez fosse melhor do que criar confusão por ali, já que não sabia nada sobre aquele reino, as construções eram extremamente estranhas e ainda se sentia confusa com tudo aquilo, não conseguia aceitar sua nova realidade, parecia que as coisas ficavam cada vez mais difíceis apenas para conseguir existir.

Era muito estranho ser uma vampira, cada movimento parecia muito difícil. Se via perdida em seus próprios sufocantes pensamentos na maior parte do tempo, sem conseguir ver com clareza as coisas e as pessoas bem à sua volta. Mas esta era sua nova realidade: um reino frio e esquisito, roupas estranhas que não sabia o nome, ter que se alimentar de seu próprio povo para conseguir continuar "viva". Mas talvez a parte mais estranha fosse a inabilidade de dormir, poderia dormir se quisesse, entretanto, não havia mais aquela magia que antes existia. Então passava as noites acordada esperando o sol extremamente fraco e frio iluminar o reino. Era bom poder passar a noite inteira acordada observando Keith dormir, sentia que havia um propósito maior em seu descanso se ela pudesse assisti-lo.

Então não fazia nada menos do que isso, com a cabeça apoiada no peito de Keith, quando pôde ver a porta se abrindo levemente em sua visão periférica. Ao se apoiar de maneira que conseguisse ver as coisas, sentou-se um pouco e viu Ivan na porta com um candelabro na mão, fazendo sinal com a cabeça para que ela o seguisse. O que ele queria desta vez? Por que estava a chamando no meio da noite? Faziam apenas algumas horas que tinham chegado. Entretanto, ela não se arriscou em perguntar, continuou o seguindo como ele pedia, até chegar numa sala de estar extensa, segurando o candelabro, ele mostrou uma pintura de sua filha, que ele mesmo havia pintado, era nítido que ela era ainda humana pois seus olhos eram verdes e as bochechas eram rosadas, a dedicação para criar algo daquele tamanho deveria ter sido gigantesca. Tinha vontade de perguntar sobre aquilo, fazer perguntas mais íntimas para Ivan, sua curiosidade crescia, entretanto, não podia simplesmente sair perguntando sobre sua filha morta. O reflexo das velas sobre o piso de madeira iluminava todo o corredor à volta de ambos, enquanto a ruiva se via perdida dentro daquela pintura, era realmente hipnotizante.

Assim que Amelie se preparou para fazer uma pergunta, ouviu um dos poucos corações que existiam naquela mansão começar a pulsar rápido, percebeu que Keith havia acordado enquanto sentia os dedos de Ivan por seus cabelos longos, como se arrumasse as mechas atrás do ombro.

Era uma conversa estranha para ser interrompida, no meio da noite, no frio e vidrada naquela obra de arte, como se fosse realmente ela e não outra pessoa.

A ruiva teve a atenção depositada completamente sobre ela mesma e suas ações, enquanto seus olhos focavam na pintura novamente após desfocarem por um segundo enquanto Keith se aproximava. Sentia as mãos do vampiro em suas madeixas ruivas, ele continuava acariciando seu cabelo enquanto ela admirava o quadro em silêncio.

— Estava pintando este quadro na semana em que matei minha filha, ambas são muito similares. — Sentiu o vampiro mexendo em suas tranças de maneira que uma caía sobre a outra e fazia um barulho irritante quando se chocavam. Apesar do barulho, Amelie não tirou os olhos da pintura ainda assim.

Seu silêncio parecia percorrer cada centímetro daquela mansão, no meio da escuridão.

— O que aconteceu com ela, aconteceu porque não havia ninguém para me ensinar o que eu precisava saber... Depois de tanto tempo, hoje sei muito mais do que sabia naquela época... Porém não adianta, ela morreu e estás aqui, a única coisa que me faz perceber que não és ela, talvez seja esta pintura. — Ivan parecia envolto demais em seus próprios pensamentos, de maneira que havia criado seus próprios planos sobre como ensinar o que ela precisava saber, sem compromete-la em momento algum.

As leves fumaças saíam das velas e tocavam o ar no meio da fria madrugada. A luz da noite entrava pelas janelas. Ela estava tão confusa e perdida no meio de tudo aquilo, que a única forma de esquecer seria se tirasse a atenção de tudo e conseguisse desfocar completamente, mas era difícil fazer algo assim quando sentia o aperto do vampiro bem em sua cintura e as mãos dele dificilmente saíam de perto.

Ivan sorriu, um sorriso que parecia acolhedor de início, porém no fim se mostrava bastante perigoso, entretanto, Amelie se distraía demais com as cerdas dos pincéis da pintura do que qualquer outra coisa.

Sentiu seus ombros serem tocados novamente, de maneira sutil, como se não houvesse forma de realmente tocá-la após o que se tornou. Amelie não sabia muito bem o que fazer, seus sentidos aguçados diziam coisas que ela não queria ouvir, seu sangue morto pulsava nas veias roxas trazendo algo macabro para toda aquela situação.

Não conseguiu se afastar de Ivan, então seu futuro estava em suas mãos. Os dedos passando por seu cabelo enquanto ouvia as palavras de Keith, o balançar sutil da cabeça ao ouvir suas últimas palavras. Amelie não possuía força física suficiente para ir contra aquilo, então tudo o que disse foi:

— É melhor do que passar por isso sozinha... E não é como se ele fosse me foder sem meu consentimento, eu morreria tentando matar ele.  

As palavras de Amelie eram honestas, talvez até demais, mas Ivan continuava passando os dedos por seus cabelos, sua respiração e o cheiro continuava estranho.

Ivan pareceu ofendido com o rumo que a conversa estava tomando e entreabriu os lábios, deveras surpreso. Passou os dedos pelos lábios antes de dizer qualquer coisa, sabia, a partir das palavras da pirata, que aquilo havia tomado um rumo indecente que nem mesmo ele conseguia controlar.

— Só não vai ter que fazer isto porque isto nunca vai acontecer, Amelie. — Suas palavras pareciam sinceras e honestas, mas seu lado vampírico parecia tomar conta de seu corpo à medida que o tempo passava.

— Ela irá perder a consciência algumas vezes no início, mas precisas ficar ao lado dela, porque se Amelie acordar e me ver, provavelmente irei sair com alguns hematomas.

Ivan riu, como que para si mesmo, assistindo a ruiva dormir num silêncio profundo novamente.

Ivan observou Amelie desacordada nos braços de Keith por alguns segundos, a afeição que havia se formado por ela ter traços parecidos com sua filha, estava se transformando em outro tipo de afeição. Sabia que eles possuíam uma conexão, já que ele havia sido responsável por sua transformação, um laço inquebrável que iria durar até um dos dois morrerem. Diferente de Amelie, ele estava criando um tipo de afeto romântico, pelas noites em que conversavam sobre suas histórias, mesmo que ela não falasse muito e ele fosse responsável pelas longas conversas, ela o ouvia, mesmo que não o respondesse na maioria das vezes e as vezes em que a pirata contou sobre sua vida, Ivan não deixou de se admirar por quão diferente aquela mulher era, diferente de todas as quais havia conhecido.

Por isto, o simples fato de que eventualmente ela iria embora, já que o impuro não desgrudava dela e estava sempre à espreita, como se sentisse que algo estava diferente, o incomodava profundamente. Sabia que Amelie não iria retribuir o sentimento que crescia dentro de si e não iria desrespeitá-la ao insistir ou revelar seus reais sentimentos. Aproximou-se graciosamente de Keith, com as mãos entrelaçadas atrás das costas, um roupão de seda carmesim com detalhes dourados se destacava através da pele cadavérica, assim que chegou perto o suficiente, usou a mão direita para acariciar o rosto de Amelie, esboçando um sorriso afetuoso, levando os olhos vermelhos que brilhavam como as velas até o impuro.

— Ela parece ter algum tipo de repulsa por seres do sexo masculino, mesmo que nossa conexão nunca possa ser quebrada e tenhamos conversado algumas vezes no meio da noite, creio que infelizmente ela não confia em mim o suficiente para não imaginar que tenha me aproveitado de sua inconsciência. O ódio e o rancor por homens parece profundo demais, mas ela nunca fala disto. — Com uma carícia da bochecha até o queixo, Ivan se afastou, servindo para si mesmo uma taça de sangue fresco.

— Não se preocupe, logo estas perdas de consciência serão mais raros e mais raros até que não aconteça mais, a transformação é diferente para cada um, ela está se recuperando rápido e logo poderá aprender algumas coisas, ela precisa de um tutor e estou mais do que disposto a ajudá-la.

Com a taça em mãos, Ivan sorriu para Keith, não um sorriso malicioso, porém talvez não fosse tão bom em esconder seus próprios sentimentos como achava que era.

Sua consciência adormecia em um sono profundo, o mais profundo que teve em anos. Quando começou a recobrar sua consciência, sentiu um toque estranho em seu rosto, depois seu queixo, o que fez um turbilhão de sentimentos tomar conta de seu peito, a fazendo abrir os olhos, agora vermelhos, imediatamente. Pulou, sem sequer se segurar e caiu ao chão, começando a se encolher e ir cada vez mais para trás, com os olhos arregalados, tentando entender quem eram aquelas pessoas.

Então as memórias a atingiram como um relâmpago. Keith era seu marido, Ivan era quem havia a transformado no que ela era agora. Engoliu em seco enquanto assistia o vampiro tentar lhe conter com palavras.

— Amelie, está tudo bem. Você está com pessoas que confia, que nunca iriam lhe machucar, é confuso no início, eu sei bem disto, mas logo irá descobrir uma parte de si que não havia descoberto ainda. Algo além do que a humanidade pode te oferecer.— Ela apenas fitou o vampiro, sem dizer uma palavra sequer.

Talvez devesse realmente aprender antes de voltar para Hahle.