Amelie já havia passado por coisas piores anteriormente que exigiam bastante força física, mas agora com a força que não tinha, era mais difícil. Sentia seus músculos doerem e se jogou na cama querendo apenas dormir depois daquele dia cansativo, entretanto, haviam mais coisas a serem feitas, como a criança que agora estava sobre os cuidados dos dois e seu bem estar, que ficou sobre os cuidados de Amelie quando Keith foi cozinhar. Assim que chegaram na sala de banho e ela encheu a banheira, ordenando que Tristan se despisse e entrasse dentro, o menino franziu o cenho preocupado.

— Por favor, não enfia minha cabeça dentro da água de novo... — Ele implorou, com medo, mas Amelie não via nada de errado nisto, então apenas deu de ombros, fazendo sinal para que ele entrasse na água, o que ele fez, gemendo de frio assim que entrou. Como estava frio e chuvoso, não molhou os cabelos ruivos do menino, o que fez com que ela não precisasse lavar os cabelos dele de maneira... Estranha. Eram seus métodos, afinal, como havia aprendido.

O vestiu com roupas de ficar em casa mesmo depois de enxugá-lo, roupas mais quentes pelo clima horrendo que estava do lado de fora e o mandou para fora do banheiro sem muita cordialidade.

— Eu acho que Keith já terminou de cozinhar, pode ficar com ele, é minha vez. — Tentou esboçar um sorriso simpático, porém só queria terminar aquilo logo e poder comer e descansar. Aparentemente o ruivinho era mais inteligente do que parecia e entendeu o que ela quis dizer, saindo de imediato.

Assim que terminou seu banho, ela vestiu uma roupa simples, tentando se esquentar esfregando as mãos enquanto saía da sala de banho, indo direto para a mesa de jantar. Já estava com a mão na comida, levando até a boca, quando ouviu seu marido falar sobre Tristan precisar rezar para os deuses antes de comer. Ela olhou para ele incrédula, como se dissesse "eu estou com fome!", mas ficou em silêncio enquanto o menino começava a rezar o que havia aprendido com os pais, há muito tempo atrás.

— Eu tenho um cavalinho de madeira, eu quero ter um cavalo bem grande um dia! — Ele comentou animado, antes de começar a comer com pressa.

Amelie sorriu, revirando os olhos para os sonhos infantis da criança, embora achasse adorável e fez o mesmo que ele.

— Seu cavalinho quando estiver maior vai ser um navio pirata, Tristan. — Falou de boca cheia enquanto soltava uma gargalhada, rindo consigo mesma. — A comida está maravilhosa, como sempre, amor. Eu só queria tubarão da próxima vez, é meio caro, mas faz um tempo... — Desviou sua atenção para o prato de comida novamente, comendo como um mendigo que não vê uma refeição há anos.

Amelie havia terminado de comer rápido, sempre comia rápido demais e era a primeira a deixar a mesa, talvez porque tenha aprendido desde criança a comer coisas roubadas e enfiar goela abaixo antes que a encontrassem, talvez porque ao entrar para a tripulação a comida nunca havia sido boa e ela tentava engolir o mais rápido que conseguia para não precisar lidar com seu próprio paladar, talvez ambos. Mesmo adorando a comida de Keith, era algo difícil de se desfazer depois de uma vida inteira fazendo, então terminou o jantar o foi limpar as mãos numa bacia de água, para voltar à mesa em seguida e esperar os dois acabarem, acendendo um charuto sem se importar se iria incomodá-los ou não.

Assim que ambos acabaram e Keith levou Tristan para a cama, Amelie os seguiu, ficando na porta e esperando seu marido terminar de dar boa noite ao garotinho, apenas para entrar no quarto e encher de fumaça de tabaco, sentando na cama ao lado dele antes que o mesmo pudesse protestar.

— Então... Err... Boa noite? — Coçou a nuca confusa com o que fazer, nunca havia tido nenhuma referência de como lidar com crianças, havia crescido em um orfanato onde a forma de educar era espancar, seu tutor e "pai" nunca havia tido nenhum filho antes de ter que assumir o papel de figura paterna da pirata e a visão que tinha da infância era bem distorcida. Não sabia por quê tinha que dar boa noite se ele iria dormir de qualquer jeito mesmo, então suspirou, já se preparando para levantar, quando Tristan a parou, fazendo uma pergunta.

— Amelie... Eu tenho mesmo que ser um pirata um dia? — Isso a fez ficar pensativa, ele precisava mesmo ser da tripulação quando estivesse maior? Não teria uma vida diferente o aguardando se fosse bem cuidado pelos dois? Ser criado por dois piratas não iria anular qualquer chance de não ser? Não sabia o que dizer, então apenas abaixou a cabeça e respirou fundo, fitando a criança de cabeça baixa antes de levantar e sair de seu pequeno e simples quartinho.

Estava completamente exausta, então apenas deitou na cama e apagou completamente, sentindo os braços de Keith ao seu redor e seus beijos no pescoço fino, enquanto sua mente mergulhava num sono profundo.

Sono que foi interrompido no meio da noite ao ouvir um barulho terrível de vômito, acordou confusa sentando num pulo e piscando algumas vezes, com o cérebro lentamente recobrando a consciência de quem era e onde estava. A chuva lá fora estava tão forte que os pingos na janela eram furiosos, podia jurar que uma hora o vidro iria quebrar de tão violenta que aquela tempestade estava. Assim que estava consciente o suficiente, viu Keith de pé, parecia que estava passando muito mal, então não pensou duas vezes antes de colocar os pés no chão frio e ir até ele numa velocidade impressionante, tentando apoiá-lo nos braços e trazer de volta para cama, mas agora estava mais fraca que antes e ele possuía uma massa muscular considerável, o que fez a tarefa ser mais difícil do que antecipara. Enquanto tentava levá-lo até a cama, completamente confusa com o que estava acontecendo, seu desespero era visível.

— TRISTAN!! — Gritou o mais alto que conseguiu chamando pelo menino, conseguindo finalmente colocar seu marido na cama com um pouco de esforço. Assim que conseguiu, correu completamente alterada até o quarto da criança e abriu a porta tão forte que ela bateu na parede de madeira do lado oposto, fazendo um barulho ainda maior. Ele dormia de maneira pesada e ela não possuía tempo ou paciência para acordá-lo de maneira convencional então apenas gritou novamente. — TRISTAN, CARALHO!! ACORDA!! — O menino acordou assustado, com os olhos arregalados, talvez pelo susto sua respiração estava ofegante e ao ver Amelie na porta ele se encolheu nos lençóis, com receio do que viria em seguida, mas ela apenas entrou em seu quarto e o puxou pelo braço como uma mãe gato, o pegando nos braços e levando para fora dali. Assim que chegou no quarto dos dois, colocou o menino no chão e correu até o guarda-roupas, pegando qualquer roupa que encontrasse. A criança arregalou ainda mais os olhos ao ver Keith naquele estado.

— O que aconteceu, Melie? — Ótimo, não bastava Keenan lhe dando apelidos, agora Tristan fazia isso também. Estava se vestindo o mais rápido que conseguia, quase caiu ao tentar calçar uma bota enquanto estava de pé, mas conseguiu se equilibrar.

— EU NÃO SEI! — Amelie também não conseguia parar de gritar, era sua forma de lidar com o desespero, sair gritando estressada e não conseguir pensar em nada antes de agir. Colocou o sobretudo de couro por último, ao menos protegeria as roupas de baixo e enquanto fechava, direcionou as palavras ao menino novamente. — VOCÊ FICA AQUI PERTO DELE, EU JÁ VOLTO! — Embora estivesse quase se defecando de medo e nervosismo, Tristan apenas acenou com a cabeça e subiu na cama, engatinhando até o lado de Keith e sentando ao lado de sua cabeça, começando a usar a mãozinha pequena para passar os dedos pelos cabelos dele.

— Minha mamãe fazia isso quando eu ficava doente. — Disse com a voz fina e a expressão preocupada enquanto assistia a pirata ruiva saindo do quarto e batendo a porta da frente sem se despedir ou pensar.

Sequer havia se lembrado de pegar suas espadas de tão nervosa que estava, não parecia que Keith estava apenas passando mal e isso a angustiava, então caminhou rápido pela chuva rigorosa, sentindo os pingos pesados e fortes contra si, sem se importar muito se iria chegar no navio encharcada. Assim que chegou, em questão de minutos, ofegante pela caminhada mais rápida de sua vida e os cabelos grudando no rosto, não encontrou ninguém no convés, então decidiu ir até a sala de Elliot, com certeza ele estaria lá, porém assim que abriu a porta, o lugar estava vazio, até a rede que ele dormia estava vazia. Amelie bufou de raiva e praticamente correu até os aposentos onde os piratas dormiam, abrindo a porta com força, o que acordou alguns de imediato.

— CADÊ AQUELE CURANDEIRO ARROMBADO?! — Isso apenas acordou mais piratas, que resmungaram com a gritaria e comoção, mas honestamente ela estava pouco se fodendo para isto agora. Um deles respondeu que Elliot estava em sua casa, o que fez ela levar as mãos até a testa e quase arrancar os cabelos de raiva. — ALGUÉM TERIA A GENTILEZA DE ME DIZER ONDE ELE MORA?!

— Ninguém sabe onde ele mora, só Flint. Ele quer manter segredo. — Um dos piratas acordados disse, bocejando com os olhos cansados. Isto só a fez ficar mais furiosa ainda e fechar a porta com tanta força que poderia facilmente quebrá-la, voltando ao convés, na chuva torrencial e indo até a cabine de Flint que ficava do outro lado.

Por sorte as lamparinas estavam acesas, o que significava que ele estava ali e acordado, então empurrou a porta ofegante e completamente ensopada, encontrando Flint trabalhando em alguns papéis, provavelmente planejando o ataque que aconteceria em alguns dias. Ele logo levantou o olhar, franzindo o cenho ao vê-la e ia abrir a boca para falar alguma coisa, quando a mesma falou por ele.

— É o Keith... — Ela parou para recuperar o fôlego. — Eu preciso do filho da puta do Elliot, mas ele não tá aqui. — Flint franziu o cenho mais ainda enquanto ela tentava respirar, pingando no piso de madeira do navio.

— Ele mora algumas ruas daqui, depois da estalagem de vocês. Bem, há uma placa de madeira na frente da casa dele sobre remédios caseiros, não vai ser difícil encontrar, porém é um pouco longe. — Flint explicou, com visíveis olheiras embaixo dos olhos. Amelie assentiu com a cabeça e quando ia sair, com pressa, ele percebeu uma coisa. — Amelie, onde estão suas espadas? Você sabe que... — Antes que pudesse terminar a ouviu bufar impaciente e desaparecer tão rápido quanto surgiu.

Elliot estava realmente testando sua paciência e ela queria muito socá-lo, iria fazer isso eventualmente, não aguentava mais a covardia daquele homem. Se ele não fosse tão covarde e possuísse alguns culhões, estaria em sua rede, no navio, e não brincando de casinha usando roupas comuns fingindo não ser o que era: um pirata tanto quanto ela, um fugitivo da lei. Não se importava com o vento frio que vinha do oceano ou a chuva que castigava sua pele e suas roupas, ou as botas molhadas e sujas que incomodavam seus pés, tudo o que queria era encontrar Elliot o mais rápido possível, então saiu do navio correndo e continuou na mesma velocidade no meio da rua, pisando em bosta de cavalo das carruagens, pedaços de peixes de pescadores, poças de água da chuva... Demorou até encontrar a casa de Elliot, mas assim que o fez, simplesmente chutou a porta, arrombando completamente, quase a derrubando, sem se importar em olhar ao redor e correu para dentro. Era uma casa medieval simples e pequena, sem muitas divisões, então não foi difícil encontrar a cama do médico, onde ele dormia profundamente, mesmo com o barulho da porta quase quebrando. Ela avançou em cima dele, praticamente subindo em cima de Elliot e o puxando pela gola da roupa. O mesmo acordou desnorteado e ao ver Amelie tão perto, engoliu em seco, confuso. Ainda estava despertando.

— Você vem comigo! — Exclamou com a voz cheia de ódio e Elliot, vestindo uma roupa deveras estranha de dormir, ao menos para Amelie, foi puxado para fora da cama com violência, ainda tonto tentando compreender o que acontecia. — Pega a porra das suas coisas! — A ordem era clara e embora estivesse confuso e com medo, ele fez como ordenado, sendo puxado por uma Amelie completamente alterada e impaciente. Chegando na rua e na chuva ele começou a tremer de frio, vestindo apenas a roupa fina de dormir e foi empurrado por Amelie por todo o caminho para ir mais rápido. Provavelmente iria ficar gripado no dia seguinte, mas ela estava pouco se fodendo para Elliot, sua prioridade era Keith. Demorou um pouco até voltarem para a estalagem e a ruiva já estava com os nervos à flor da pele, então abriu a porta com força, e arrastou Elliot para dentro, o levando até o quarto e empurrando ele dentro do recinto, que por sorte possuía uma pequena lareira de pedra simples e daria para esquentar os dois. Elliot tremia de frio e nervosismo e Amelie estava confusa sobre o que sentir, mas havia percebido que Keith tinha piorado. Tristan estava quase dormindo em cima do travesseiro de Keith quando os dois chegaram abruptamente, então coçava os olhos com sono.

Elliot arregalou os olhos assim que viu o estado de Keith e embora estivesse tremendo de frio, colocou a bolsa de couro no chão e a abriu, começando a mexer dentro e procurar alguma coisa. Tristan ainda coçava os olhos bocejando quando Amelie correu até a cama e segurou o rosto de Keith com as duas mãos. Ele estava tão quente de febre que suava e parecia delirar, ela não fazia ideia do que estava acontecendo e isso só aumentou sua preocupação.

— Eu tô aqui, tá tudo bem... — Percebeu que suas mãos estavam geladas, talvez ajudasse com a febre. Tirou o sobretudo encharcado, começando a passar partes do tecido por seu rosto até que impaciente, virou-se para Elliot. — ELLIOT!! FAZ A PORRA DO SEU TRABALHO ANTES QUE EU TE MATE AQUI MESMO!! — Estava desesperada e furiosa, ao virar-se novamente, percebeu que Tristan havia se assustado com o grito dela, pois estava de olhos arregalados, mas Amelie realmente não sabia o que fazer ou como reagir.

— E-Eu... Eu preciso saber o que ele tem primeiro! — Percebeu que o médico também estava estressado e alterado, aquele ambiente estava extremamente pesado e isso não era bom para a criança que estava ali.

— Tristan, vai pra cama! — Ela exclamou, fitando o menino ruivo que apenas negou com a cabeça.

— Eu quero ficar aqui... — Ele se encolheu adoravelmente perto da cabeça de Keith e voltou a fazer carinho em seu cabelo loiro escuro. Amelie suspirou, respirou fundo, sentia que seu coração ia sair pela boca de tão alterada que estava.

— ELLIOT!! — Gritou novamente, sem nenhuma paciência e quando virou-se para o médico, ele se aproximava com um livro pesado e uma garrafa média de álcool. Amelie engoliu em seco olhando a garrafa, mas precisava focar, então a pegou e abriu. Assim que sentiu o cheiro lembrou-se daquela bebida extremamente ruim e forte que havia tomado quando quase morreu e seu estômago revirou, sentiu a espinha gelar, aquilo não era um bom sinal, mas precisava fazê-lo beber aquela coisa, seja lá o que fosse. Não confiava em Elliot tanto quanto Keith, mas Amelie não confiava em muitas pessoas. — Aqui, bebe isso... Vai ficar tudo bem... — Levantou a cabeça de Keith o suficiente para ele beber aquela coisa e o fez engolir o máximo que conseguiu, embora um pouco da bebida caísse por seu queixo. Sua febre estava preocupante.

— Garoto, o que ele está sentido?! — Elliot perguntou, enquanto folheava rapidamente aquele livro cheio de desenhos e palavras que Amelie não entendia.

Tristan levantou o olhar para o outro ruivo, agora eram três ruivos num mesmo ambiente, e ainda fazendo carinho no cabelo de Keith, respondeu.

— Ele tá muito quente... E ficava choramingando de dor aqui... — Apontou para o local onde Keith segurava quando ainda estava consciente, continuou encarando Elliot com os olhos grandes e arregalados enquanto Amelie posicionava a cabeça de Keith no lugar novamente. Ela sentiu que iria vomitar de tanto nervosismo, mas sua forma de lidar era demonstrando raiva.

— VAI LOGO ELLIOT!! — Gritou para ele com uma voz de ódio e um olhar fuzilante, Elliot ficou ainda mais nervoso e começou a folhear mais depressa, até que parou em uma pagina e começou a ler e observar as gravuras com atenção, sussurrando consigo mesmo. Depois de alguns longos minutos, ele fechou o livro e se agachou novamente, guardando em sua bolsa e começando a procurar outras coisas, até que levantou-se novamente e se aproximou de Keith, com uma lâmina na mão, alguns panos e uma agulha grossa com linhas. Amelie arregalou os olhos vendo aqueles objetos e depois avançou em cima de Elliot, o segurando pelo pescoço. Ela estava fraca, porém com raiva tirava forças sabe-se lá de onde. Elliot não tinha o físico ou a estrutura mais adequada para lutar e apenas arregalou os olhos claros. — QUE PORRA VOCÊ PENSA QUE TÁ FAZENDO?!

— E-Eu já vi isso antes... Q-Quer dizer... Eu sei... O que é... Muitas pessoas morreram com isto... — Amelie o fitou com o olhar furioso e fuzilante, com a respiração alterada, até que o soltou, sem ter muita escolha. Ele segurou o pescoço, limpando a garganta e ao se recuperar voltou a atenção para Keith.

Se aproximou, puxando um banco que tinha algumas coisas em cima, mas ele logo tratou de tirar, sentando-se ao lado da cama e levantou a camisa molhada de suor de Keith o suficiente para visualizar a área que iria cortar. Amelie pegou a garrafa de álcool que havia dado a Keith e antes de pensar duas vezes, começou a engolir o conteúdo com a mão trêmula e os olhos que saíam lágrimas, misturando-se com a chuva que havia a encharcado. Ao menos Keith não poderia lhe dar esporro agora, tentou deixar o suficiente para ele, colocando a garrafa no chão e suspirou, sentando-se na cama bem próxima de seu rosto, quase chutando o balde sem querer de tão nervosa e angustiada que estava.

— Eu tô aqui... Tudo bem... Foca em mim... — Bem, talvez ele não estivesse consciente o suficiente para ouvi-la e nem para sentir seu hálito com cheiro de álcool, mas ela estava muito consciente. Suas mãos estavam geladas demais pelo frio e ansiedade e ela pingava molhando a cama mais ainda e molhando até o próprio Keith.

Quando Elliot começou a cortar a carne, sem aviso prévio pois estava com pressa, Tristan viu o sangue e fechou os olhos, enfiando a cabeça nos cabelos bagunçados de Keith, tentando não ver o processo. A pirata, entretanto, não se importava e ia entre olhar o que Elliot estava fazendo e limpar as lágrimas que escapavam de seus olhos.

— Depois disto ele vai precisar ficar de repouso o máximo que conseguir... Se ele sobreviver... — Elliot era sempre muito pessimista e a vontade de socar aquele homem só aumentava a cada segundo que passava. Já estava nervosa, ansiosa, angustiada e impaciente e ele ainda tinha os culhões de falar de morte.

Começou a limpar o sangue que jorrava com os panos que havia pego, tentando abrir caminho com a lâmina para chegar até o órgão que buscava. Embora a anatomia não fosse perfeita, principalmente para os curandeiros de Hahle, aquele era um homem muito inteligente. O processo deveria ser excruciante e isso só deixava Amelie mais aflita.

— Se ele morrer... — Ela disse entre os dentes, com os olhos úmidos, porém extremamente furiosos. — Eu amarro suas tripas num mastro e faço você girar ao redor até cair morto no chão. — Elliot a olhou com os olhos arregalados e engoliu em seco, voltando a atenção para o que estava fazendo, assustado.

Tristan estava muito assustado com toda aquela situação, mas se negava a sair perto de Keith, parecia que mesmo em tão pouco tempo, havia nutrido um afeto grande pelo impuro, como se ele fosse a única pessoa no mundo que ele confiava e se sentia seguro. Amelie entendia a sensação, por muito tempo teve isto com Flint, agora havia Keith em sua vida e de certa forma Keenan, mas o sentimento de uma figura paterna que iria te segurar caso você caísse e faria tudo por você, apenas tinha com Flint, afinal de contas seria estranho e deveras problemático ter aquele sentimento pelo próprio marido. Mas embora entendesse, não conseguia deixar de sentir um pouco de incômodo com aquilo, queria que Tristan confiasse e se sentisse seguro com ela também, afinal de contas ela tinha o encontrado, talvez estivesse com um pouco de ciúmes. Suspirou, visivelmente alterada com tudo que estava acontecendo naquela madrugada e tentou acalmar Keith, usando seu sobretudo para tentar amenizar a febre novamente enquanto ouvia ele gemer de dor.

Vê-lo em dor fazia ela sentir dor também, seu peito apertava, seu olhar estava arregalado e angustiado. Virou-se para Elliot mais uma vez, que continuava secando o sangue com alguns panos enquanto mexia nos órgãos.

— VAI LOGO ELLIOT!! — Gritou com ele novamente e homem engoliu em seco, tentando ser mais rápido. Amelie estava com a respiração irregular e conseguia ouvir os batimentos cardíacos em seus ouvidos, tentou voltar sua atenção para Keith novamente, continuando o processo de enxugar o suor frio de seu rosto e diminuir a febre, mas suas mãos tremiam tanto que até mesmo isto estava difícil.

— Achei! — Nesse ponto os lençóis de Elliot e a cama já estavam cheios de sangue, Elliot estava pálido de nervosismo, Tristan continuava escondido para não ver a cena e Amelie sentia que estava prestes a surtar. — Estou sem óculos, é mais difícil... — O médico tentou explicar, tentando parar mais o sangramento.

— EU NÃO DOU UMA FODA, VAI LOGO! — Ela gritou com ele novamente, voltando sua atenção para o ruivo e ele limpou a garganta, continuando o processo.

Amelie fez questão de assistir tudo, de quando ele arrancou o órgão com a lâmina, de quando ele começou a costurar, de quando ele começou a estancar o sangramento antes de fechar o corte que fez... Apenas para ter certeza do que ele estava fazendo e se estava fazendo certo. Observou tudo de cenho franzido, queria vomitar, não por nojo, via membros estraçalhados e tripas em toda batalha, estava acostumada, mas por angústia. Não sabia se o homem que amava ainda corria risco, se ele iria ficar bem, o que iria acontecer... Não conseguia imaginar continuar aquela vida sem ele, sentia que iria perder a sanidade e desta vez seria perene.

Sem pensar muito, Amelie pegou a garrafa novamente e embora a substância fosse muito ruim, ela bebeu tudo num gole só, mas era tão forte que já se sentia embriagada, havia ficado fraca para aquilo.

— Amelie, você não pode... — Elliot tentou falar, mas ela apenas jogou a garrafa vazia no chão.

— CALA BOCA, ELLIOT! — Ele jogou os braços, em sinal de derrota e voltou a atenção para o corte, que já havia costurado, limpando-o com o pano que estava menos encharcado de sangue. Assim que acabou, respirou fundo e checou a pulsação de Keith.

— Ele vai ficar bem. — Disse o médico, com um breve sorriso no rosto. Suas próprias vestes de dormir estavam sujas de sangue, parecia que tudo estava sujo de sangue, entretanto, havia conseguido.

Tristan ergueu a cabeça para olhar o que tinha acontecido e depois se escondeu perto de Keith novamente, o abraçando pelo pescoço.

— Você vai ficar bem, tá vendo? — O menino bocejou, mas continuou ali.

Amelie suspirou pesadamente, enfiando o rosto nas mãos, completamente alterada, se segurando para não socar Elliot. O médico começou a recolher suas coisas e colocar dentro da bolsa novamente.

— Se você continuar com isso... — Ele apontou com a cabeça para a garrafa no chão. — Não vai ter procedimento que te salve. — Ele voltou a guardar suas coisas, porém Amelie simplesmente não aguentou.

Explodiu completamente, num pulo levantou-se da cama, puxou Elliot pela roupa, quase rasgando suas vestes de dormir e em seguida desferiu um soco contra seu rosto tão forte que o médico caiu no chão tossindo.

— Se você se intrometer na minha vida de novo não vai ser só um soco que vai levar. — Estava completamente fora de si, tudo aquilo havia sido demais para ela.

Elliot virou-se, com o nariz sangrando e os dentes sujos de sangue, apoiando-se nas mãos para levantar, mas parou para fitar Amelie.

— Vamos esperar então para quando Flint ou Keith descobrirem que você continua se matando. — Cuspiu o sangue no chão e se levantou, limpando o nariz com a mão.

Elliot começou a organizar sua bolsa para sair e Amelie estava de punhos fechados quando ambos ouviram Keith falando, agora consciente, ou ao menos era o que parecia. Ela realmente esperava que ele não houvesse ouvido o que Elliot falou, seu sangue ferveu de ódio e queria encher aquele imbecil de porrada, mas precisava se controlar. Respirou fundo como se tentasse se acalmar e virou para Keith, voltando quase correndo para seu lado. O abraçou tentando não ser muito bruta, apenas envolvendo seus ombros e Tristan se afastou, sentando direitinho na cama com um sorriso animado no rosto.

— Você tá bem? O que tá sentindo? — Em seguida segurou seu rosto com as duas mãos, os olhos visivelmente marejados e o rosto agora pálido visivelmente corado pelo álcool e o choro que insistia em subir para seu rosto, porém ela precisava ser forte, então apenas engoliu em seco, esperando que ele não notasse o cheiro e achasse que vinha de si mesmo, mas ao mesmo tempo sabia que Keith era inteligente demais, mesmo se não houvesse ouvido Elliot.

— Ele vai ficar bem, Melie! — Tristan começou a se balançar na cama, animado com um sorriso estampado no rosto, segurando os próprios pés enquanto ia para frente e para trás. — Depois disso a gente pode comer carne de tubarão! Mamãe fazia sopa, é muito bom! — A criança já fazia planos para o futuro em sua mente inocente e Amelie apenas suspirou, sem conseguir prestar muita atenção ao que Tristan dizia.

— Bem, eu vou indo... — Elliot limpou a garganta, pegando a garrafa vazia do chão e colocando em sua bolsa.

— Já vai tarde. — Amelie resmungou, revirando os olhos. Estava começando a odiar Elliot.

— Bom descanso para ti também, Amelie. — Disse o médico, antes de se virar, sorriu para Keith e dirigiu-se a ele. — Precisa ficar de repouso o máximo que conseguir, Keith. Lamento dizer que terá que ficar em casa, de cama, por uma ou duas semanas. — E o ataque seria dali a alguns dias.

Amelie engoliu em seco, prendendo a respiração e abaixando a cabeça.

— Você pode ficar com Tristan por três dias, amor. Posso pedir pra Gallant fazer alguns pratos e deixar guardado na despensa, não vão morrer de fome. — Ela sabia muito bem que ele era teimoso e iria protestar contra aquilo, mas esboçou um sorriso tentando lhe passar algum conforto. — Eu posso pegar alguns livros e deixar aqui pra você e Tristan, você pode ensinar ele a ler. O que acha, Tristan? — Virou a cabeça para o menino que ficou ainda mais animado.

— Ebaaa! Você pode me contar aquelas histórias, Keith! Podemos contar histórias de vampiros e lobisomens e fazer sombras nas paredes com a luz da lareira! — Ele exclamou, com um sorriso enorme no rosto e muito animado.

— Viu? Não é tão ruim. Só três dias! — Elliot assentiu com a cabeça e virou-se, deixando o recinto, sua ordem era clara. Se Keith fizesse qualquer esforço que exigisse demais poderia soltar os pontos e seria um desastre mortal.

Amelie tentou manter a expressão neutra em relação àquilo, mas sabia que a discordância estava no horizonte e tentava se controlar para não surtar novamente, afinal de contas, Elliot não estava mais ali para ser o foco de sua raiva.

O sorriso de Amelie desapareceu ao perceber que Keith estava bravo, sabia que aquela seria uma conversa complicada. Virou-se para Tristan, vendo sua animação diminuir e olhar de um para o outro com um olhar curioso e preocupado, agora repousando as mãozinhas no colo. Ela estendeu a mão para ele e fez sinal para ele ir até seus braços, o que o menino fez com um pouco de relutância.

— Acho que é bom ele voltar a dormir, foi uma noite difícil. — E seria ainda pior a partir dali. Amelie se virou com a criança nos braços e ele apoiou o queixo no ombro da pirata, acenando para Keith com um sorriso no rosto.

— Boa noite, Kei! — Aparentemente ele gostava de dar apelidos às pessoas, Amelie quis rir disto, mas seu humor se encontrava no fundo do oceano àquele ponto da madrugada e tudo o que queria era resolver aquela questão agora.

Levou Tristan até seu quarto simples que só possuía uma cama, ao menos até eles comprarem outros móveis e o colocou na cama, o cobrindo com o cobertor. Não sabia o que fazer em seguida, então apenas checou se havia madeira o suficiente em sua lareira de pedra, extremamente simples e saiu do quarto o deixando ali para dormir sozinho.

Ao voltar para onde Keith estava, apenas pegou o balde de vômito, levando para fora em silêncio e depois voltou, inquieta.

— Então você vai simplesmente se matar só porque não confia em mim sozinha? Você esqueceu do que eles fizeram comigo ou algo do tipo? Do que me fez recuperar a sanidade? — Cruzou os braços com o semblante claramente incomodado, estava quase gritando de raiva, mas tentava se controlar.

Tentou se acalmar caminhando de um lado para o outro, passando as mãos no rosto ou respirando fundo, mas nada funcionava e não queria transformar aquilo em uma discussão maior do que já estava.

— Não é porque eu não gosto do Elliot que você não vai ouvi-lo! Eu tenho meus motivos pra não gostar dele, aquele filho da puta não me deixa em paz! Mas ele sabe o que ele diz quando se trata dessas coisas, você vai ficar aqui com Tristan e ponto final! — Estava impaciente, não sabia o que faria se eles acabassem discutindo ali, seus nervos já estavam aflorados demais e Amelie não era conhecida por tomar decisões racionais quando estava com raiva. — São só três dias! Três dias! Um dia de viagem e preparações, um dia de ataque, um dia de viagem novamente! Eu vou estar de volta antes que você perceba! — Virou-se para Keith novamente, parando no meio do quarto.

Seu rosto estava vermelho de raiva e nervosismo, suas mãos estavam inquietas, ela queria muito resolver aquilo de maneira civilizada, mas as palavras escapavam por seus lábios.

— Ou você prefere ter uma esposa catatônica e sem vida que vai acabar se matando eventualmente por não conseguir lidar com o próprio trauma?! VOCÊ ESQUECEU DO QUE ESSES MERDAS FIZERAM COMIGO, PORRA?! — Voltou a ir de um lado para o outro como uma formiga perdida, dessa vez mais rápido, como se sua mente estivesse funcionando a mil por segundo, e realmente estava.

Sentiu os olhos se encherem de lágrimas novamente, lágrimas de ódio e levou as mãos ao rosto.

— Você não pode tirar isso de mim, não pode! — Então parou novamente, o fitando, completamente alterada. — Eu vou nessa incursão ou você nunca mais vai me ver de novo. — Sua expressão estava completamente fechada, os olhos brilhavam com as lágrimas acumuladas por conta da luz da lareira, ardiam de ódio como fogo. Assim como Keith estava determinado, ela também estava.

Amelie tremia de raiva enquanto ouvia Keith, sentia que iria explodir a qualquer momento, como se fosse uma bomba prestes a explodir. Levou as mãos ao rosto, quase arrancando a pele enquanto esfregava as lágrimas de ódio, sentindo o cabelo ensopado grudando nas mãos. Quando tirou, deu uma risada fraca e sarcástica, sem muita emoção.

— Ah, você sofreu... — Desviou o olhar para o lado, cruzando os braços novamente. — Eu achei que EU tinha sido estuprada todos os dias e todas as noites por vários homens diferentes o tempo inteiro, torturada todos os dias, chicoteada até ficar em carne viva, espancada até ter o rosto desfigurado e quase morrer, ser privada de comida, água e a porra de um balde pra cagar, quase nua, sangrando por todos os buracos possíveis, sendo espancada porque meus dentes rangiam de frio... Preciso continuar?! Porque tem mais! Tem muito mais!

Sua voz estava tão agressiva e cheia de ressentimento que precisou parar para tentar repor sua respiração.

— Mas não! Não! Você que sofreu, você que foi literalmente fodido, né?! Claro! Você que foi fodido em todos os buracos do seu corpo até perder sua própria sanidade! — Sentiu os olhos ficarem úmidos novamente e respirou fundo, sentindo que iria perder o controle a qualquer momento. — Então vai, faz a porra que você quiser! Vai pra porra de um ataque perigoso pra cacete cheio de pontos, deixa a abrir, se mata de uma vez! Mas depois não reclama porque eu voltei a beber de novo porque eu vou! — Estava realmente se controlando para não gritar e acabar chamando a atenção de Tristan, ele não precisava lidar com aquilo.

A vontade que Amelie tinha era de sair correndo e ir para o bar mais próximo, mas sabia que Keith iria segui-la se fosse e não queria ser responsável pela piora e potencial morte dele, se alguém fosse ser responsável por isto, este alguém seria ele mesmo, então apenas cruzou os braços novamente o fitando.

— Certo, faça a merda que você quiser. — Sua voz agora estava despida de emoção, como se Amelie houvesse se tornado uma casca vazia novamente, mas não havia sido isso que acontecera, ela queria apenas ficar em silêncio.

Entretanto, não podia deixar Keith naquela condição, completamente sujo de sangue, em uma cama suja de sangue, com roupas sujas de sangue, então tratou de despi-lo, sem muita delicadeza, em seguida foi até o guarda-roupas e pegou roupas limpas, vestindo-o com aquelas, para em seguida retirar os lençóis sujos e substitui-los, ajudando-o a se levantar quando era necessário, jogando todas as coisas sujas no chão. Daria um jeito nelas depois, de qualquer forma.

Fez tudo isto completamente em silêncio, já havia dado seu ultimato, não iria mudar de ideia. O peso e angústia que sentia no peito não iria fazê-la mudar de ideia, estava com raiva demais para pensar racionalmente, nem mesmo trocou as roupas molhadas, apenas pegou um dos travesseiros, jogou o mais longe que conseguiu, no chão próximo à lareira e deitou, virada de costas para Keith. Era ali que iria dormir aquela noite e talvez nas próximas, não sabia ainda, mas não queria dividir uma cama com ele e muito menos com uma criança, ou fazer Tristan dormir com ele para ela dormir numa cama infantil, ou qualquer coisa do tipo. Preferia o chão, porque pelo menos este a acolhia sem julgamentos e ela não precisava dizer nada para o fogo que crepitava na lareira.

Amelie não deitou longe necessariamente para dormir, àquela altura, ela não iria conseguir dormir de maneira alguma, não depois de tudo o que aconteceu e muito menos depois da discussão que teve com Keith. Tudo aquilo estava pesando muito em sua cabeça, então apenas fitou a parede por todo aquele tempo, a mente turbulenta corria de um lado para o outro, repassando tudo o que havia acontecido e tudo o que Keith havia dito, tudo o que ela havia dito. Não se arrependia do que havia falado, sua intenção em voltar a beber era real e honesta e Amelie odiava mentir para Keith, mesmo se fosse uma verdade dolorosa e dura de se aceitar.

O trauma que ela passou, todo o tempo que viveu afogada em sua própria miséria, como uma casca vazia por conta de tudo o que fizeram com ela, havia piorado de tantas maneiras seu instinto suicida. Haviam muitas coisas no âmago da pirata que ela não compartilhava com ninguém, havia muita coisa que guardava para si, sofrendo em silêncio muitas vezes. Como a tristeza que sentia ao crescer sem pais, de ter sido abandonada, de ter visto tantos amigos, irmãos, morrerem em batalha apenas para sobreviver, todos os abusos que sofreu apenas por ser mulher, até mesmo os mais violentos nas mãos dos vigilantes... Tanta coisa pesava em sua mente nas horas mais silenciosas da noite, ninguém sabia disto além dela. Mas estas coisas sobrecarregavam e o que sofreu com os vigilantes a sobrecarregava agora, de maneira que não conseguia lidar, então mesmo sem Keith saber, ela precisava voltar aos velhos hábitos, era onde encontrava algum tipo de paz dos demônios em sua cabeça, ao menos temporariamente. Se sentia horrível com isto, queria ser diferente, mas não conseguia não ser quem ela era.

Passou todo aquele tempo pensando nisto, de olhos bem abertos e o coração apertado, até que ouviu uma espada caindo no chão, o que a assustou, fazendo ela pular levemente como um gato assustado, segurando o travesseiro com mais força ao ouvir a voz de Keith.

— Sim, o que você quer? — Sua voz estava indiferente, mas com um tom miserável e triste.

Continuou na mesma posição, sem se virar para trás, encarando a parede de madeira, agora com os olhos já desfocados por olhar por tanto tempo e ouvindo a lareira que parecia menos intensa a cada minuto que se passava, ao contrário da tempestade do lado de fora que continuava castigando Hahle.

Seus olhos fecharam com certa força quando ouviu as palavras de Keith. Também odiava discutir com ele, principalmente discussões tão feias e principalmente em um momento como aquele, quando ele estava tão debilitado. A última coisa que Keith precisava era de uma discussão e como sempre, ela era a causadora de uma. Cada dia que passava se sentia menos merecedora daquele homem, tudo o que ele teve que aprender e se tornar até aquele momento havia sido por causa de suas decisões completamente inconsequentes, seus impulsos, sua teimosia... Quando pensava nisto desejava nunca ter falado como se sentia para ele, havia sido uma decisão egoísta, havia pensado apenas nela e o quanto ela queria estar com ele, sem cogitar as consequências que isso poderia trazer. E olha só onde estavam... Amelie completamente traumatizada e quebrada tentando juntar os cacos bebendo escondida, ele fraco e provavelmente sofrendo por conta de um procedimento extremamente doloroso e ainda tendo que lidar com as merdas dela, sem mencionar ter que aprender a lutar, decidir aprender coisas com Elliot e ainda ter que trabalhar para Flint, tudo isto por causa de Amelie e suas decisões.

Sentiu o rosto queimar e os olhos arderem com lágrimas, abriu os olhos novamente e enxugou uma lágrima que escorria por seu rosto. Decidiu levantar-se, pegando o travesseiro que já estava ficando desconfortável naquele chão e colocou de volta na cama, começando a se despir sem se importar se ele veria, precisava se livrar daquelas roupas molhadas. Jogou tudo no chão, depois lidaria com todas aquelas coisas sujas e iria poder lavar depois. Vestiu uma calça e blusa, ambos de linho. À esta altura o cabelo já estava mais seco, então não precisava enxugá-lo nem nada parecido. Se sentia mais confortável com roupas quentes e leves, já começava a usar menos até suas camisolas de dormir, planejava se livrar de todas, não gostava de se sentir tão exposta... Ao menos não depois de tudo que aconteceu. Ela percebeu, infelizmente, que embora tenha conseguido recuperar sua consciência plena, aquelas memórias a assombrariam para sempre. Não era um prospecto bom para se ter.

Deitou na cama ao lado de Keith, de cenho franzido e suspirou pesadamente. Queria pedir perdão pelo que estava planejando fazer por suas costas, mas não seria difícil adivinhar o que era se o fizesse. Engoliu em seco sem saber o que dizer, até que algum tempo depois decidiu que precisava falar algo.

— Eu que falei merda... Com você desse jeito ainda por cima... A culpa é toda minha, não peça perdão por algo que você não começou. Suas palavras foram honestas.

Amelie estava séria demais e seu orgulho não permitia que ela perguntasse como ele se sentia, embora ela quisesse muito saber e se preocupasse. Apenas engoliu suas palavras e virou-se para cima, fitando o teto com a mente mais turbulenta que o mar numa tempestade.

A chuva que castigava o reino batia forte contra a janela, como se adivinhasse o que acontecia dentro da cabeça de Amelie, o vento forte passava pela estrutura de madeira cantando uma canção melodramática. Talvez em circunstâncias diferentes, seria extremamente aconchegante e acolhedor, ao menos em sua visão. Ela gostava de água. Mas ali, naquele momento, parecia que até a natureza conspirava contra eles.

Ela piscou forte, tentando controlar o choro, embora seu rosto já estivesse corado pelo sangue que começava a se acumular. Talvez Keith não conseguisse se mover, mas ela conseguia. Virou-se para o lado, para ele, subiu mais um pouco no travesseiro e se aproximou do marido, envolvendo os braços ao redor de seus ombros e se encolheu como uma concha, trazendo o corpo para perto dele o suficiente para que seu rosto estivesse na altura dos seios e ela conseguisse beijar seus cachos loiros.

— Eu te amo, Keith. Espero que um dia me perdoe.

Sabia que ele não iria entender, mas ela entendia. Entendia até demais. Talvez ele fosse achar que se sentia culpada pela briga ou pelas coisas que disse ou qualquer outra coisa, mas Amelie se referia ao futuro. O futuro não seria bonito e não seria fácil e ela sabia que eventualmente, em algum momento, cedo ou tarde, suas escolhas teriam consequências e ela não estaria mais do lado dele, ou em lugar nenhum daquele Continente. Estaria no fundo do oceano, onde seria jogada após perecer da doença que ela mesma iria fazer chegar a um estado crítico.