Haviam deixado Tristan com Elliot durante aquela noite e foram buscá-lo no dia seguinte, já procurando algum lugar maior naquela espelunca para que ficassem confortáveis em um lugar onde o menino não teria que dividir um quarto com os dois e se tornar mais traumatizado do que já era. Faziam apenas dois dias que haviam o adotado, de certa forma, teriam que ser rápidos antes dos planos de Flint começarem e Amelie queria muito apresentar os dois um ao outro, ironicamente os três se pareciam como se fossem biologicamente conectados.

Amelie ajustou o chapéu na cabeça quando chegou no convés do navio com Keith e Tristan segurando a mão de seu marido, olhando as coisas e os piratas de maneira curiosa, embora já tenha estado lá antes, agora estava mais claro e visível e apenas nuvens cinzas cobriam os céus. Ela procurou Flint com os olhos, mas não o viu, entretanto isto não diminuiu sua incomum animação para aquele dia, que foi quase apagada quando viu Logan vindo em sua direção. Sua expressão fechou de imediato e Amelie suspirou, já cansada da voz dele sem nem ouvi-la.

— Oi! Você tá de volta! Eu senti saudades. — Desta vez ele não estava bebendo, porém estava igualmente irritante como da vez anterior. — Quem é esse? — Perguntou sorrindo abertamente para Tristan, que se encolheu do lado de Keith, dando um passo para trás e abraçando sua perna com um dos braços.

— Tristan. — Amelie respondeu impaciente. — E nós temos coisas pra fazer, Logan. Foi bom te ver de novo. — Forçou um sorriso e fez sinal para Keith a seguir trazendo a criança.

Assim que chegaram em uma área mais distante de Logan, Amelie puxou o garoto carinhosamente como uma mãe gato e o colocou parado de um lado, em seguida pegou a espada de um dos piratas de súbito sem permissão e jogou no chão na frente do menino.

— Nós vamos treinar. Eu comecei aos quinze, você deve começar mais cedo. — Sorriu satisfeita consigo mesma.

Tristan olhou para o chão onde a espada estava, maior que ele mesmo, de olhos arregalados e depois para Amelie como se pensasse que ela era louca. Realmente, talvez ela fosse, entregando uma lâmina para uma criança. Sua visão de mundo era extremamente distorcida. Puxou suas duas espadas e o garoto deu dois passos para trás, apavorado olhando para as lâminas de Amelie enquanto ela apenas ergueu as sobrancelhas como se perguntasse "o que está esperando? vai logo!".

Amelie bufou de raiva quando Keith começou a dar esporro sobre o método de treinamento dela. O fitou com ódio nos olhos e suspirou, irritada.

— Por que ele não pode?! Se eu consegui, ele consegue! — Guardou uma das espadas na bainha e voltou os olhos para a criança. — Pronto, com uma só fica mais fácil. Pega a espada! — Deu a ordem novamente, já impaciente e o menino se encolheu assustado.

— Eu... — Ele olhou para Keith tentando buscar apoio e depois para Amelie novamente. — Eu tô com medo de você... —

Isto apenas deixou Amelie mais irritada, não sentia que estava fazendo algo errado, então achava que ele estava sendo sensível e medroso demais, sem falar na visível rejeição à ela.

— Medo faz parte. Pega a espada! — Deu a ordem pela terceira vez e quando ia avançar contra a criança, ouviu a voz de Keenan, virando-se para ele.

Não sabia que ele havia se machucado de maneira tão fatal naquele lugar, seus olhos cianos se arregalaram um pouco ao ver sua condição e no fundo ela se sentiu culpada, porém não demonstrou, apenas abriu um sorriso para ele e deu um soco de brincadeira em seu ombro.

— Quando eu te vi pela última vez, tu tinha dois olhos, Grandão! — Riu consigo mesma e deu de ombros ao ouvir o comentário dele sobre Tristan. — É, ele faz parte dessa bagunça agora. — Quando olhou para Tristan, ele fitava Keenan com olhos assustados, usando sua mãozinha para segurar a mão de Keith que estava em seu ombro direito, como se implorasse para sair do meio daqueles lunáticos.

Ouvir as palavras de Keith e Keenan apenas fez Amelie ficar com mais raiva ainda e guardar a outra espada na bainha, ficando de mãos vazias, principalmente por ver Tristan nos braços de Keith. Ela cruzou os braços, bufando e virou-se para o maior.

— Você não vai treinar ele! Eu vou! Aprendi com o próprio Flint desde os quinze anos! Não existe tutora melhor pra ele. — Exclamou exasperada, voltando o olhar para a criança, que apenas desviou completamente, se agarrando a Keith como se sua vida dependesse disso.  — Ele é molenga e medroso demais, temos que tirar isso dele! Talvez ver uns corpos dilacerados em batalha ajude... — Deu de ombros, a impaciência estava clara, mas isso só fez a criança se encolher mais nos braços de seu marido, escondendo o rosto no ombro dele.

— Eu não quero ficar perto deles... — Tristan murmurou com a fina e infantil voz trêmula, mas Amelie estava perto demais e foi o suficiente para ouvi-lo.

Sentiu como se houvesse levado uma facada no peito e soltou os braços com raiva, passando a mão no rosto depois e se virando para sentar-se em um barril vazio que havia perto de onde estavam.

— Claro, não é como se eu tivesse te salvado nem nada! É só dar o foda-se. A vida é cruel, criança! Ela não vai passar a mão na sua cabeça sempre que estiver sentindo dor. — Talvez tenha dito aquilo de maneira alterada e emocional demais, com a raiva misturada ao ressentimento e a dor das memórias que lhe atingiram de repente, como um soco no estômago.

Quantas vezes não se sentiu desamparada e não havia ninguém para segurar sua mão? Quantas vezes quase morreu e não havia ninguém para socorrê-la nesta vida extremamente perigosa? Por quanto tempo a única pessoa que confiava era Flint e este sempre estava ocupado demais? Por quantos anos viveu sozinha antes de encontrá-lo, comendo o que dava na rua, tendo que se virar com os pedaços de comida que conseguia roubar e às vezes nem isto? Quantas vezes foi flagelada, violentada, torturada, machucada, completamente despida de qualquer senso de humanidade, como um animal selvagem, e teve que aguentar sozinha? A visão que Amelie tinha da vida era muito diferente da maioria, acreditava que o mundo não era um lugar para pessoas frágeis, que os fracos morreriam porque não conseguiriam lidar com as tempestades. A vida para Amelie era como um oceano raivoso e as pessoas eram um navio, e o oceano saía destruindo todos os pedaços de madeira deixando a água salgada entrar pelos buracos e você precisava conseguir suturar os pedaços quebrados ou iria afundar e muitos não conseguiam, pois a água era impiedosa.

Ainda assim, a visível rejeição a machucava, no fundo e seus olhos não conseguiram deixar de mergulharem em lágrimas, que ela limpou com a manga do sobretudo, antes de tirar o charuto do bolso e acender, tentando acalmar os sentimentos que faziam seu coração acelerar de maneira desconfortável.

— Eu não vou mais participar dessa conversa, se virem. — Desviou os olhos, cruzando as pernas e inalando a fumaça enquanto assistia dois piratas que tocavam instrumentos a alguns metros de onde estavam, atraindo uma pequena plateia que bebia enquanto conversava. Era o que faziam nos tempos livres, afinal.