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As noites de abstinência continuavam, depois do ataque à Andrômeda, Amelie só conseguiu retornar para casa depois de passar alguns dias na sala de Elliot e por conta dos machucados e pontos, ela não conseguia andar de um lado para o outro durante a noite, tinha que ficar na cama, se remexendo nervosamente até amanhecer. Mas já fazia um mês desde o ataque, seus ferimentos, por sorte, não haviam sido tão ruins quanto da vez em que ela quase morreu e conseguiu se recuperar bem, agora eram só cicatrizes a mais para a quantidade extensa que ela já possuía pelo corpo. Não gostava disso, embora não se importasse muito com sua aparência, sentia que suas cicatrizes ofuscavam sua beleza, mas esta era a vida de um pirata, no fim das contas, não podia ter o luxo de se importar se tinha cem ou apenas duas cicatrizes. Nesse ponto, ela já tinha tantas que não conseguia contar, era uma de suas frustrações em relação à si mesma, o que a deixava meio cabisbaixa, mas ela nunca dizia o motivo. Talvez Keith fosse pensar que era apenas a abstinência se ela ficasse em silêncio. Já conseguia voltar a andar de um lado para o outro, então suas noites em claro se passavam da mesma forma que eram antes da cruel batalha, álcool era algo difícil de se livrar quando ela havia passado a vida inteira bebendo em todas as oportunidades que tinha, nunca pensara que ia chegar tão longe, então não se importava, mas agora as consequências haviam vindo e ela tentava lidar com elas. Ataques de raiva, cara fechada e mal humor não eram incomuns, era quase uma rotina, mas naquele dia ela estava estranhamente animada, embora tenha dormido muito pouco e ficado presa em seu inferno pessoal por horas e horas até anoitecer.

Geralmente não usava as roupas que usava na rua em casa, não tinha motivos para isso, mas naquela noite foi diferente, colocou o usual sobretudo, chapéu, botas e calça, depois de pentear o cabelo depois de muito tempo. Provavelmente seu marido iria estranhar muito esse comportamento, mas não se importou. Organizou tudo o máximo que conseguiu e embora não saísse pulando como uma gazela, sua animação fora do usual era notável. Cantava uma cantiga que aprendeu um tempo depois de entrar para a tripulação aos 15 anos, quem cantava era um homem que morrera alguns anos depois, mas ela gostava daquela música. Fazia isso enquanto ajustava a calça dentro da bota e ouvia o tilintar das pequenas argolas que tinha colocado no cabelo ao se mover. Ela tinha gostado daquelas argolas e nunca tirava, talvez ficar sem álcool tenha feito ela se importar mais com sua aparência, mas Amelie era difícil de se desvendar ou compreender, nem ela mesma se entendia.

— ... Don't forget yer old shipmate, faldee raldee raldee raldee rye-eye-doe! — Cantarolava um pouco alto balançando a cabeça para os lados, mas sua atenção foi tomada ao ver Keith voltando da cozinha. Ela abriu um sorriso e levantou num pulo, rápido demais para perceber, caminhou em passos largos até a mesa e se apoiou nela, sentindo o cheiro de sua deliciosa comida, vê-la sorrindo depois que parou de beber era algo difícil, olhou para Keith com um sorriso travesso no rosto. — Eu tenho uma surpresa! — Ao invés dos dois pratos de madeira usuais, Amelie pegou mais um e colocou na mesa rindo consigo mesma como uma esquizofrênica. Havia saído alguns dias atrás e convidado Keenan para jantar com eles naquele dia, mas não havia contado a Keith, sabia que ele não gostava de Keenan por motivos que iam além de sua compreensão, mas ela queria que os dois se dessem bem e quem sabe até se tornassem amigos eventualmente. Ele havia gostado do soco dela e ambos eram bem parecidos, então considerava Keenan um amigo, embora fosse difícil não considerar toda a tripulação como parte de uma enorme família, juntos em situações extremamente perigosas, cada pulo em um navio inimigo era uma incógnita, não dava para saber se você iria voltar... Com vida, ao menos, então era necessário ver o parceiro ao seu lado como um irmão e não um inimigo, Amelie sabia bem disso, mesmo tendo desavenças com alguns tripulantes no passado.

Pegou uma garrafa de vinho que havia comprado e colocou sobre a mesa, observou por alguns segundos como se fosse uma pedra preciosa e ela precisasse daquele líquido, sentia que iria morrer sem, mas iria morrer sem Keith também, então suspirou, levando o olhar para Keith novamente, tentando focar naqueles lindos olhos azuis e os cachos loiros, talvez a camisa branca, mas se focasse demais em algo além do seu rosto iria acabar levando aquilo para uma rota que não iria ser muito legal de ser interceptada por um amigo de convés quando ele aparecesse.

— Não é pra mim. — Voltou a sorrir, dessa vez um sorriso um pouco forçado, era difícil olhar aquela garrafa e não beber, então sentou na cadeira de madeira escura e começou a encher seu copo de ferro com água. Talvez fosse mais fácil fingir que aquilo era vinho, precisava mostrar que estava se esforçando, mas vez ou outra seu olhar voltava para a garrafa.

Amelie sabia bem que Keith não estava esperando por Keenan e suas perguntas de quem poderia ser o convidado a fez dar de ombros, ainda sorrindo. Não sorria pelo convidado que viria, mas por seus planos de fazê-los serem mais do que eram no momento, tinha esperanças de que, eventualmente, eles se tornassem amigos e estava fazendo o possível para que isso se tornasse realidade. Não queria desavenças entre os tripulantes e especialmente entre o homem que amava e alguém que ela considerava, pelo menos, um colega. Sabia das inseguranças de Keith e sabia que ele tinha um tipo de rixa pessoal com o espadachim, mas esperava que depois do que aconteceu na festa e o resultado quando voltaram para casa houvesse surtido algum efeito, quando ela disse que pertencia a ele e que nada mudaria isso, ainda assim, temia que não fosse como planejava, que ele entendesse tudo errado novamente.

— Não é nenhum deles, é alguém que eu quero que você conheça melhor e dê uma chance. — Respondeu o mais gentilmente que conseguiu, se levantou da cadeira e foi até Keith, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela sentou em seu colo, de frente para ele, apoiando as pernas na cadeira, segurou seu rosto com as duas mãos, acariciando e o beijou, um beijo apaixonado, tentando mostrar que ele não precisava ter medo de perdê-la para ninguém. — Mas talvez eu precise te acalmar antes... — Disse com um sorriso no rosto, voltando a beijá-lo intensamente. Ao cortar o contato de seus lábios com delicadeza, após ouvir as batidas na porta, ela olhou em seus olhos.  — Lembra do que eu disse aquele dia... Eu sou sua, apenas sua, nada vai mudar isso. — Sussurrou baixo para que apenas ele ouvisse e juntou suas testas por alguns segundos, antes de se levantar.

Não podia deixar que a situação fugisse do controle enquanto tinha alguém na porta, não podia deixar que as coisas fugissem do controle quando Keith desse de cara com Keenan. Sorriu para ele antes de se dirigir até a porta de madeira. Caminhou com passos largos até ela e suspirou, antes de abri-la. Viu a figura de Keenan à sua frente e apenas dirigiu um sorriso gentil para ele, queria que tudo ocorresse bem.

— E aí, Grandão! — Deu um leve soco em seu ombro, de brincadeira, e deu espaço para que ele entrasse. Tinha feito o possível para que as coisas estivessem organizadas, apesar das mãos trêmulas, já que iriam ter visita.

— Amor, o Keenan vai jantar com a gente essa noite. — Dirigiu o olhar para Keith assim que Keenan entrou em seus aposentos e fechou a porta atrás dela, fazendo sinal para que o mais alto fosse até a mesa, então caminhou até a cadeira em que estava sentada, ao lado de Keith, sabia que ele iria odiar isso, mas precisava tentar. Pegou seu copo de água, já que não podia beber e afastou um pouco a cadeira, o suficiente para colocar os pés em cima da mesa, sem se importar com cerimônias. Lançou um olhar acolhedor para Keith, estava dando seu melhor na situação em que se encontravam e esperava que os dois pudessem fazer o mesmo, por isso estava sendo tão carinhosa com ele, para que ele não tivesse dúvidas, para que ele não precisasse sentir ciúmes, não queria que ele sentisse que ela iria deixá-lo por alguém que ela não tinha o mínimo interesse em estar perto romanticamente, em sua cabeça e em seu coração, existia apenas Keith e nada nem ninguém iria mudar isso. Havia prometido que apenas a morte iria separá-los e Amelie não quebrava uma promessa.

Entretanto, por baixo do bom humor que tentava transparecer, por dentro estava apreensiva em como aquilo iria se desenrolar, principalmente pelo temperamento de Keith em relação ao Keenan. Se algum tipo de discussão acontecesse, todos os seus planos iriam por água abaixo.

— Quando fazemos parte de uma tripulação pirata, precisamos ver nossos colegas de batalha como irmãos e não como inimigos. — Disse meio que para os dois, balançando o copo de ferro em sua mão como se fosse vinho, talvez conseguisse enganar seu cérebro se o fizesse, embora não tenha tido muito sucesso até então, era mais difícil ainda quando tinha uma garrafa de vinho bem à sua frente, seus olhos novamente iam dos olhos de Keith até a garrafa, esperava que ele não notasse, mas talvez se Keenan e ele esvaziassem a garrafa antes que ela surtasse por abstinência as coisas poderiam dar certo.

Se sentia mal por colocar Keith naquela situação, conseguia entender o motivo de ele ter surtado com ele e criado essa inimizade, ele ainda tinha, no fundo, suas próprias inseguranças e talvez se sentisse ameaçado por Keenan, achando que Amelie iria preferir ele ao invés do homem que quase morreu mais de uma vez para proteger. A conexão que os dois tinham era muito mais forte do que qualquer coisa existente, o amor que ela sentia por ele e vice versa era maior do que qualquer sentimento do universo, porque o amor é um sentimento extremamente forte e puro. Embora conseguisse entender, isso não a agradava, ela queria que ele fosse mais confiante e sentisse a verdade: que ela não poderia se interessar por ninguém mais, que seu coração era dele, que nada embaixo do sol mudaria isso. Era frustrante não conseguir apertar um botão e mudar a forma que ele pensava e se via. Amelie percebeu a forma que ele olhou para ela e a expressão que ele fez quando viu Keenan, segurou seu olhar no dele por alguns segundos. Percebeu sua hesitação em servi-lo, a forma que ele não estava sendo genuinamente amigável. Ela conhecia ele e sabia quando ele estava desconfortável. Então ela finalmente olhou para o prato e começou a comer, como era um ensopado não podia comer com as mãos como sempre fazia, tinha que usar uma colher de madeira, o que a irritava um pouco. Enquanto comia, ouviu as palavras de Keenan, então ela parou de comer e ajustou sua postura, continuava uma postura despojada enquanto ela sentava na cadeira, sem as pernas na mesa agora, não sabia agir de outra forma. Segurou a mão de Keith e sorriu para ele, tentando demonstrar algum tipo de confiança.

— Sim, aquela merda foi um pesadelo... — Segurou os olhos nos de Keith, até desfazer o contato e virou-se para Keenan, ainda segurando a mão de seu amado através da mesa. — Mas eu tenho sorte de ter um homem incrível ao meu lado. — Disse de maneira mais séria.  — Eu soube que você se machucou bastante também, Grandão. — Soltou a mão de Keith gentilmente para voltar a comer, agora um pouco menos séria, com um sorriso no rosto.

Levou os olhos para a garrafa de vinho enquanto comia, esperava que ninguém percebesse, mas parecia impossível não perceber quando ela fitava aquela garrafa de maneira tão intensa. Voltou os olhos rapidamente para o prato de comida à sua frente e começou a comer mais rápido.

— Eu achei que estava morrendo de novo, não tenho medo de morrer, meu único medo é morrer e Keith simplesmente enlouquecer, porque eu sei que eu enlouqueceria. Não que eu seja normal, mas... — Deu de ombros, ela sabia que não era. Em todas as frases tentava demonstrar o tamanho de sua devoção para que Keith se sentisse mais confortável naquela situação e não houvesse espaço em sua cabeça para paranoias como da outra vez.

Amelie retribuiu o sorriso, olhando profundamente nos olhos de Keith quando ele falou aquilo e achou suas palavras um pouco engraçadas. Ela enfiou um pedaço grande de carne na boca e começou a mastigar ferozmente e sem cerimônias, como se fosse um animal selvagem. Quando engoliu, com um pouco de dificuldade, seus olhos se perderam na garrafa de vinho por um tempo, mas logo voltaram para seu miserável copo de água, o que ela não daria para ter um gole daquele vinho...  

— É, você precisa ter uns parafusos a menos pra conseguir me aturar por tanto tempo. — Deu uma risada e se sentiu um pouco mais animada ao ver os dois interagindo, seus olhos iam de Keenan para Keith enquanto eles conversavam, um olhar curioso e atento. Ao ouvir as palavras de Keenan sobre o fio vermelho, ela fez uma careta. Nunca tinha ouvido falar sobre aquilo, mas já que era uma lenda antiga, fazia sentido que ela não sabia. — Interessante... Eu acho... — Limpou os dentes com a língua enquanto pensava no que ele falou, ainda confusa. Ao ouvi-lo falar sobre a vida pirata, ela enfiou outro pedaço de carne sem cortar na boca.  — Eu tô nessa vida desde os quinze anos. Já vi muitos irmãos morrerem, mas a pior coisa não é isso, a pior coisa é que nos veem como monstros, menos do que pessoas, como animais selvagens sem nenhum senso ou consciência, guiados pela violência... Não é isso o que somos, mas se eles querem que sejamos monstros, monstros seremos. — Se lembrou de quando seu pai havia dito aquilo para ela uma vez, quando ainda era adolescente.

Riu ao ouvir Keenan comentar sobre Keith transformado. Engoliu o pedaço de carne depois de mastigar algumas vezes e conseguia sentir as piadas sobre cachorros e diversas raças de cachorro invadindo sua mente, mas tentou se manter séria.

— Eu fui pega pelos vigilantes uma vez. — Comentou casualmente como se não fosse nada, não se sentia confortável mostrando vulnerabilidade para alguém que não fosse Keith, conseguia esconder bem como se sentia quando falava sobre aquilo. — Eu sei bem o que eles pensam de nós, eu vi nos olhos enquanto me torturavam pra conseguir informações, pra conseguir que eu traísse meu pai e minha tripulação, quando fui flagelada sem roupa deixando cicatrizes horríveis que carrego até hoje, quando montaram a forca com corda curta pra que minha morte fosse lenta, com os ossos quebrados e o rosto estourado depois de ser espancada, torturada com ferramentas extremamente específicas, queimada, chicoteada com um chicote que tinha ferro me deixando em carne viva, eu sei o que eles pensam de nós e em como nos veem porque eu vi. Mas quando você está sendo torturado, a pior parte não é a dor ou o medo do que vem depois, é saber que depois disso você nunca mais vai ser a mesma pessoa. Acredito que só não abusaram de mim porque eu era muito jovem ou talvez porque me viam como algo desprezível. Eu não quero que meus irmãos passem por algo assim, nunca. É por isso que a liberdade, a nossa liberdade, a real liberdade de navegar sem medo, é tão importante. Somos vilões e monstros pra maioria das pessoas, principalmente pra quem está no poder, mas apenas piratas sabem que somos tão humanos como a humanidade que tenta nos exterminar... Pelo menos a maioria de nós. — Falou tudo isso olhando para a água que estava dentro do copo, água esta que a fazia lembrar do oceano. Não conseguia imaginar uma situação como aquela onde pessoas que se importava e principalmente Keith, passavam por algo como ela passou. Por isso decidiu se tornar tão forte que apenas a menção de seu nome criava arrepios nas pessoas mais frágeis, não aceitava ser tratada daquela forma nunca mais.

Ouvia as palavras de Keith enquanto comia rapidamente, queria terminar logo porque odiava comer com talheres, era tão mais fácil comer com as mãos que quando tinha que usar uma colher não conseguia evitar de aborrecer. Claro que não era o ideal comer com as mãos, principalmente quando você não as lava, mas era uma coisa que ela fazia desde que se conhecia por gente, nunca tinha sido cordial ou tido maneiras decentes, nem mesmo quando era criança. Um pensamento antigo veio à sua mente de quando, aos 11 anos, foi pega forçando uma criança mais velha a comer a comida dela porque tinha sido uma papa dura e sem gosto e ela enfiava a comida na boca da própria criança que era notavelmente maior que ela, ferozmente só porque não tinha gostado da comida e isso lhe rendeu uma boa surra de uma das mulheres que cuidava do orfanato. Devia ter sido um alívio quando ela foi expulsa e não precisaram mais lidar com ela. Deixou escapar uma risada baixa se lembrando daquilo, era melhor do que se lembrar dos vigilantes ao menos. Embora estivesse muito concentrada na comida, conseguia ouvir e processar o que seu marido falava e quando ela percebeu seu olhar para ela, se afastou um pouco do prato. Era um sorriso triste, o que fez seu peito apertar. Ela se questionava o que deveria estar passando em sua cabeça, mas com toda aquela conversa sobre a vida de pirata e os perigos, não era difícil adivinhar. A expectativa de vida de um pirata era de cinco anos, nem sabia como havia sobrevivido por tanto tempo entre o álcool, as doenças que às vezes assolava parte da tripulação e ela tinha que dividir espaço com eles na parte mais baixa do navio, onde montaram as redes pra dormir. Tudo geralmente fedia naquela parte, pessoas presas num mesmo espaço, onde todos os desejos líquidos do navio desciam para, e ainda tinha a água do mar que as vezes entrava por pequenos buracos e tripulantes bêbados quase todas as noites, que acabavam urinando no chão, alguns tinham que dormir nesse chão, então era tudo um caos, no dia seguinte não era difícil notar que algum deles havia adoecido, seja pela comida ou pela água contaminada, passar meses no mar não era fácil, muitas vezes tinham que fazer isso, mas por sorte Blackmore cresceu o suficiente para ter uma área separada para que os tripulantes dormissem, e alguns até conseguiram pequenos quartos que tinham apenas uma cama com um colchão duvidoso e um banco para apoiar o que quer que fosse, mas os quartos eram minúsculos e Amelie muitas vezes preferia montar uma rede próxima ao convés para conseguir dormir ouvindo o som e o cheiro do mar. Mas isso tinha sido antes de se juntar a Keith e decidir que não era essa vida que queria que ele tivesse e não se importava em pagar um lugar simples em uma estalagem para que tivessem, pelo menos, algum tipo de privacidade e dignidade, longe de uma enorme tripulação.

Quantas vezes não havia visto seus irmãos morrerem por doenças fúteis, quando era mais nova. Agora o navio era mais organizado, pelo menos. Não soube como retribuir aquele sorriso, carregava um sutil tom de tristeza que ela não gostava de ver nele, embora também fosse apaixonado, então apenas abaixou o olhar. Era fácil divagar e se perder em seus pensamentos, mas Keith evitou que isso acontecesse quando a envolveu com um dos braços, o que foi inesperado para dizer o mínimo. Sair de perto dela depois de tudo o que passaram, parecia plausível e ela gostava até, porque também não sairia do lado dele em momento algum, eram como unha e carne, numa vida como aquela era difícil formar laços porque as consequências caso um ou o outro morressem em batalha, doença ou ataque de sirens seria muito doloroso de lidar, mas também era impossível não formar. Infelizmente esta era a vida de um pirata, você vê as pessoas que ama ou tem algum tipo de afeição e consideração morrendo diante dos seus olhos enquanto você não pode fazer nada, ela tinha visto isso várias vezes. Era uma vida cruel, mas qualquer vida em Hahle era cruel e ser um pirata em terras tão inóspitas, mesmo se tornando alvo de lordes, reis e vigilantes, parecia muito mais seguro do que ter uma vida normal e simples naquelas terras. Ao menos sabiam como se defender e tinham uma legião de irmãos leais, ao menos esperava que todos fossem leais, mas sempre tinha um ou outro que fugia desse padrão e só estava ali para o próprio ganho, sem dar a mínima para o que aconteceria se entregasse seus irmãos se isso colocasse uma boa quantia de kham em seus bolsos.

Apoiou a cabeça no ombro de Keith, depois de depositar um leve e despretensioso beijo em seu pescoço, gostava de tê-lo perto e de sua afeição, fazia-se sentir como se todos os demônios e fantasmas que a assolavam fossem embora. Era como um remédio. Assistiu ele servindo Keenan enquanto falava e seus olhos não saíam da garrafa e do líquido que saía dela. Então ouviu a resposta de Keenan sobre uma estratégia, afastando a cabeça do ombro de Keith, olhando para os dois com o cenho franzido.

— Espera... Ir na frente é suicídio. Keith não pode ir na frente, podemos trocar de lugar, eu fico com a parte frontal. — Estava falando muito sério, era fácil derrubar um pirata naquela posição, principalmente quando entravam num navio pela primeira vez. Se perguntava por que ele tinha mencionado como aprender as coisas com Elliot, mas não era difícil de se imaginar, todas as vezes que iam para batalha, Amelie se feria de alguma forma. Mesmo que suas habilidades, por ser muito inteligente, pudesse ser beneficial para toda a tripulação quando estivessem lutando, ela sabia a real raiz de seus motivos. — Eu não tenho nada que mudar, tô bem assim. — Deu de ombros teimosamente enquanto voltava a comer.  — Já que estamos numa noite de reunião, passando um bom tempo juntos, pelo que acredito, talvez eu pudesse ter um pouco do vinho... — Olhou para Keith com o melhor olhar suplicante de cachorro abandonado que conseguiu. Não conseguia aguentar mais aquela maldita água. Já esperava um grande "não", mas valia a pena tentar, pelo menos.

Amelie bufou ouvindo a resposta de Keith, já esperava por isso, então não a surpreendeu, mas irritou. Ela cruzou os braços com uma cara de raiva notável. Sabia que não podia, mas qual é! Era uma noite entre companheiros e se Keenan estava bebendo, ela também precisava beber, mas sempre que pensava nisso se lembrava do que Keith falou para ela na noite em que tiveram aquela briga, se ela quisesse provar que o amava como dizia, teria que se controlar e fazer um esforço, que para Amelie era um esforço imenso.

Keenan sugeriu outro plano, mas aquilo estava muito confuso na cabeça de Amelie. Os dois não podiam ir na frente ao mesmo tempo, Keenan não podia ir sozinho na frente, mesmo sendo alto e bem forte, não era invencível.

— Não. Você não pode ir sozinho na frente. Mesmo sendo grande e forte, você é humano e um tiro no peito ou uma espada no estômago é suficiente pra te matar. — Disse aquilo em um tom meio preocupado, esperava que não fosse entendido de maneira errada, ela apenas zelava pela segurança de seus irmãos e gostava de Keenan, não tanto quanto zelava pela segurança de Flint e nem perto do que zelava pela segurança de Keith, mas ainda assim...

Suspirou, levantando. Pegou uma maçã que estava na mesa de madeira e foi até a cama, se jogando nela enquanto cruzava as pernas, com a bota balançando no ar. Começou a jogar a maçã para cima e depois a pegava novamente, observando a fruta. Talvez ficar longe de álcool fosse ajudar. Era bom, pelo menos naquele momento, que o ambiente fosse completamente aberto e a mesa estivesse a apenas alguns metros da cama, assim ela não precisava ficar tão perto do vinho e na mesa e poderia continuar na conversa.

— Precisamos de outro plano, não somos os únicos piratas do navio, embora sejamos, honestamente, os melhores. Uma tripulação de quase cem pessoas... — Não parecia justo se arriscar para escoltar os outros piratas, pelo menos não na cabeça de Amelie. Ela continuou jogando a maçã para cima enquanto a observava descendo e subindo, até que num cálculo errado, a maçã caiu direto em seu rosto. — Ouch... — Grunhiu baixo. Não havia sido a pior dor que tinha sentido, mas havia jogado a fruta bem alto e veio direto em sua cara. Amelie passou a mão onde havia sido atacada pela maçã e pegou-a, sentando rapidamente, jogando a fruta com raiva no chão e pisando com sua bota tão forte que ela se desfez em frangalhos.  — Merda de maçã! — Bufou, tirando as botas, porque agora uma delas estava suja e deitando na cama novamente, enquanto desenhava coisas no teto em sua imaginação. Era entediante e estressante ficar sem álcool, principalmente quando tinha uma garrafa bem ao seu lado.

O objetivo de Amelie naquela noite era que os dois se dessem, ao menos, bem. Que não houvesse nenhum tipo de hostilidade entre os dois, por menor que fosse e embora Keenan estivesse se comportando bem, era visível que Keith estava desconfortável. Ela voltou a deitar na cama depois que estourou a pobre maçã com sua bota e seu chapéu caiu no processo, embora continuasse fitando o teto enquanto ouvia os dois conversando, ela não pôde deixar de notar a hostilidade sutil que pairava no ar. Não achava uma boa ideia ninguém ir na frente, mas já que o espadachim preferia ir assim mesmo, não o contestou novamente.

Sentiu-se um pouco aliviada quando Keenan terminou a garrafa de uma vez, pelo menos o vinho havia acabado, mas sua cabeça criava planos mirabolantes para conseguir o álcool da garrafa, como colocar água dentro ou coisas do tipo. Amelie tinha que afastar estes pensamentos antes que fizesse alguma besteira e estava perdida neles enquanto as vozes dos dois homens se tornavam um eco em sua cabeça, até que a frase de Keith a fez virar o rosto para ele com o cenho franzido. Ele simplesmente expulsou Keenan da estalagem sem nenhum tipo de escrúpulo, mascarando com palavras cordiais e até preocupação com seu bem estar, o que Amelie sabia que não era o caso. Logo o mais alto respondeu ao que ele disse e se levantou.

— Não, espera! — Sentou-se num pulo, mas antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, a porta foi fechada com força e Amelie ficou pasma fitando o lugar por onde ele havia acabado de sair, com uma expressão um tanto surpresa.

Achava que as coisas estavam indo bem, que talvez seu plano estivesse dando certo enquanto discutiam planos para saques e em como aumentar as defesas, achava que Keith estava mais confortável depois que ela demonstrou seu carinho em frente ao loiro, mas parece que havia se enganado terrivelmente, porque ele ainda teve as bolas de simplesmente expulsá-lo de lá.

— Que porra foi essa?! — Exclamou para Keith agora, com o cenho franzido. — Não sabia que essa casa era só sua ou que o convidado era só seu, na verdade acredito que eu o convidei, mas se era tão ruim assim estar na presença dele, poderia deixar nós dois sozinhos! — Agora era ainda mais fácil para Amelie sentir raiva e não foi diferente dessa vez, ela simplesmente explodiu, como o usual, porém desta vez havia um motivo. Parecia que homens eram mais burros e infantis, ou que a mente deles evoluía em um ritmo diferente.  — De novo essa merda! — Começou a xingar o vento enquanto sentava na ponta da cama de novo, colocando as botas. Não era de pedir desculpas ou coisas assim, mas sentia que desta vez precisava, ela havia o convidado, afinal. Levantou-se e se dirigiu à porta em passos pesados, com raiva, saindo e a batendo atrás de si. Procurou Keenan com os olhos, ele não devia estar tão longe, havia acabado de sair, afinal.

Desceu as escadas de madeira da estalagem se dirigindo à saída, até que o encontrou com os olhos, não era difícil encontrar alguém tão alto no meio das ruas de Terus. Suspirou e caminhou rápido até ele, mas seus passos eram leves e ninguém a ouvia se aproximar, quando enfim o alcançou, encurtou a distância entre os dois se colocando à sua frente.

— Olha, geralmente eu não peço desculpas, mas eu te convidei e sinto que é o mínimo que posso fazer depois que meu marido foi rude com você. Eu pensei que poderiam se tornar, ao menos, colegas ou algo do tipo, mas talvez eu tenha sido ingênua. Na maioria das vezes a cabeça dura imprevisível sou eu, mas com você parece que ele é diferente. Então... — Amelie respirou fundo e massageou as têmporas com os dedos. — Eu sei que não vai querer voltar depois disso e se ele pedir desculpas não vai ser genuíno, então eu peço desculpas pela situação que te coloquei. — Abriu os olhos novamente e fitou Keenan, olhando nos olhos desta vez. Tinha que levantar a cabeça mais do que levantava com Keith porque o homem era enorme, mas isso não a amedrontava.